(Publicado originalmente em Seg, 15 de Dezembro de 2008 16:10)
Por Beto Almeida (*)
Sempre que o presidente Hugo Chávez menciona de modo elogioso o ex-presidente brasileiro Getúlio Vargas em suas freqüentes visitas ao Brasil, as reações são variadas. Convenhamos, para os brasileiros é raro ouvir de um dirigente revolucionário de esquerda, socialista, que cita Marx, Engels e convida à leitura de Trotsky, elogios ao papel histórico desempenhado por Vargas.
Há reações de surpresa, outros reagem com incompreensão, há também desconcerto e até mesmo de discordância. Mas, mesmo assim, o presidente venezuelano tem razão ao colocar Vargas na História da América Latina como um líder nacionalista, antiimperialista e responsável pelas mais profundas transformações sociais progressistas que mudaram a cara do Brasil. Não por acaso, o presidente Lula assinou decreto criando a Semana Vargas, destinada a divulgar a obra e o pensamento do líder anualmente, oportunidade em que afirmou ter sido aquele o mais importante presidente brasileiro. Portanto, mais uma concordância entre Lula e Chávez.
A própria relação atual entre Brasil e Venezuela produz algumas significativas respostas para as reflexões que os discursos de Chávez suscita. Os dados indicam um crescimento vigoroso nesta relação, especialmente das vendas brasileiras para o país caribenho-andino-amazônico, dividindo parte do empresariado brasileiro que não sabe se comemora e apóia a intensificação desta cooperação bilateral ou se segue as orientações intervencionistas emitidas da Casa Branca para que seja vetado o ingresso da Venezuela no Mercosur, buscando transformar Chávez numa ameaça à democracia, sem que haja sustentação factual para tal rotulação propagada arbitrariamente pela mídia controlada pelos anunciantes transnacionais. Neste caso, vale citar declarações de Lula, do alto de sua popularidade: “o que há na Venezuela é democracia demais!”.
Com uma pecualiaridade que deve merecer atenção mais acurada. Sendo a economia mais desenvolvida do continente sul-americano, o Brasil está possibilitando à Venezuela ter acesso a um conjunto de bens, tecnologias e serviços que, dada sua posição política, talvez fosse mais difícil de obter se procurados, por exemplo, nos EUA. Registre-se as dificuldades que o bloqueio impõe a Cuba nesta matéria. Os EUA recusam vender aviões a Venezuela. Com oBrasil, a relação tem permitido a instalação de condições para queimar etapas e a Venezuela, num curto espaço de tempo vem operando algumas fases de seu próprio desenvolvimento não realizadas antes em razão do pensamento retrógrado, parasitário e colonizado dos dirigentes políticos que comandaram esta verdadeira fortaleza petroleira até a chegada de Hugo Chávez ao poder, A “maldição do petróleo” – Não é simples enfrentar a “maldição do petróleo” pela qual países ricos no mineral sofrem intervenções imperiais, golpes de estado, têm seus presidentes levados à morte, como Vargas, e são impedidos de transformar a receita petroleira em alavanca de desenvolvimento para seus povos. Como agora proclama o presidente Lula face à estupenda descoberta de um mar de petróleo, desde já alvo de pressões e tentativas de manipulações pelos poderosos interesses que quebraram o monopólio estatal do petróleo criado na Era Vargas e forçam para uma desnacionalização desta nova riqueza. Lula chegou a ir até a sede da UNE convocando os estudantes a saírem às ruas para uma nova campanha “O petróleo é nosso”….
E tem anunciado que este petróleo novo será industrializado aqui mesmo e será usado em proveito do povo brasileiro, não de meia dúzia de transnacionais. É o Lula retomando Vargas. Na Venezuela, a “maldição do petróleo” condenou aquele país riquíssimo a uma atrofia sócio-econômica por décadas, pois, apenas o setor petroleiro se desenvolveu, mas em benefício das camarilhas colonizadas pelo império, impedindo o desenvolvimento global do país, sua infra-estrutura, sua industrialização, suas políticas públicas, sua legislação trabalhista, sua cultura soberana. O caso da Venezuela é dos mais graves e mais emblemático: era tal o nível de submissão e vassalagem das oligarquias que dirigiram o país antes da República Bolivariana, que as reservas petroleiras venezuelanas eram consideradas como reservas nacionais …. pelos governos norte-americanos! Contavam com elas em seus cálculos de política energética interna! Chávez deu um basta a esta era de rapina colonialista e isto explica o ódio que desperta nas camarilhas entreguistas venezuelanas – pelas quais está jurado de morte – que sempre se sentiram “maiameiras”, de voracidade insaciável. Por isso, o petróleo venezuelano sustentou o padrão de consumo norte-americano, asfaltou as avenidas de Washington e Nova York, suas guerras, mas o povo venezuelano era obrigado a viver em “en las casas de cartón” como no vigoroso canto-denúncia de Ali Primera, hoje o cantor oficial do processo revolucionário venezuelano, embora morto em 1986, em circunstâncias que levantam fortes dúvidas. A Era Vargas e a Venezuela – A oligarquia da Venezuela registrava um dos mais elevados consumos de caviar e champanhe do mundo, mas não fabricava fósforos, não possuía sequer economia agrícola, apesar da exuberância de suas terras, clima, água e da enorme quantidade de mão-de-obra atirada no abismo do desemprego, devorada por uma gigantesca criminalidade que só agora vem sendo realmente combatida de verdade, através da industrialização , do desenvolvimento agrícola e das obras de infra-estrutura, capazes de gerar emprego em massa.
Nesta empreitada o Brasil é importante parceiro da Venezuela. É neste ponto que se revela a atualidade de Vargas, o que dá razão às constantes referências que Hugo Chávez ao ex-mandatário brasileiro, que, acossado por um golpe orquestrado pelo capital externo contra seu governo nacionalista, preferiu dar um tiro no peito a aceitar ser deposto. Fica claro que o Brasil só pode hoje desempenhar este papel de ser uma alavanca para o desenvolvimento venezuelano, para que as etapas de desenvolvimento não realizadas em função da “maldição do petróleo” sejam agora recuperadas sob uma direção revolucionária, como num processo de revolução permanente, graças a uma estrutura instalada e consolidada pela Era Vargas no Brasil e que mesmo a fúria dos governos da privataria não conseguiu demolir totalmente.
É com financiamentos do BNDES – banco estatal de fomento, um dos maiores do mundo, criado por Vargas – que são realizadas obras de grande porte na pátria de Bolívar, tais como a expansão do metrô de Caracas, a kilométrica ponte sobre o Rio Orenoco e agora o apoio à produção agrícola. As parcerias entre a Petrobrás – empresa criada por Vargas e que foi provavelmente o motivo maior da sua dramática morte, como ele diz em sua Carta Testamento – e PDVSA, também só podem ser viabilizadas graças à sólida estrutura estatal que sustenta estas duas grandes alavancas de desenvolvimento, sendo que o processo de recuperação da soberania venezuelana sobre a PDVSA é um forte estímulo para que providências com o mesmo sentido sejam urgentemente adotadas no Brasil, agora alvo maior de cobiça pelos novos campos de petróleo descobertos, para a plena recuperação do controle nacional sobre a Petrobrás, tal como era a vontade de Vargas, não sem razão, citado por Chávez.
A ameaça está em outro lado – Sem a industrialização brasileira da Era Vargas, sem a estruturação do Estado Nacional, sem a implantação de instrumentos desenvolvimentistas como o BNDES, não teria surgido no Brasil ferramentas como a a Petrobrás, a Vale do Rio Doce, a CSN e, mais tarde, a Embrapa, que hoje, sob acertada orientação de Lula, cumpre decisiva função para ajudar a Venezuela a recuperar os anos perdidos de sua economia agrícola durante a prevalência da “maldição do petróleo”. Somente agora pode a Venezuela falar com realismo em conquistar a meta da soberania alimentar, supondo-se que o governo Chávez esteja atento para impedir a captura da agricultura venezuela em expansão pela oligopólica das sementes transgênicas. Vale assinalar ainda que a Venezuela compra 100 milhões de litros de etanol por ano do Brasil para reduzir a poluição da gasolina. Assim, o que se nota é que os setores produtivos vão se interligando, tal como na eletricidade venezuelana da usina de Guri que abastece Roraima, sendo esta a única “invasão”, muito benéfica ao nosso povo por sinal, para o desespero dos setores mais conservadores no espectro político brasileiro, que querem inventar a “ameaça Chávez”.
Enquanto responsavelmente a Venezuela fortalece sua defesa, o Ministério da Marinha do Brasil reconhece que não tem condições de proteger nosso petróleo de algum “espertinho”, como disse Lula com realismo, ao tempo em que liberou concretamente recursos para a construção do submarino nuclear brasileiro. Está claro que não é da Venezuela que o Brasil tem que se defender, há outros países poderosos que historicamente sempre rapinaram, à mão armada, o petróleo de outros povos. Basta olhar a história…. É contraditório também reconhecer, como fazem os pensadores militares preferidos da mídia conservadora, que o Brasil sim tem necessidade urgente de reconstruir sua defesa demolida e recriar uma indústria militar para defender sua soberania, mas acusar Chávez de fazer o que se pretende fazer aqui. Diante das reiteradas críticas deste setor a Chávez, resulta curioso o silêncio mantido ante o impressionante armamentismo da Colômbia, que acaba de receber 600 tanques dos EUA, supostamente para se “combater a guerrilha”. Combate-se guerrilha com tanques???
Afinal, Chávez é uma ameaça ou é um exemplo do que deveria ser feito para recuperar soberania aqui? Ou não será exatamente por ser um exemplo é que se torna uma “ameaça” para os que querem impedir uma indústria militar ao sul do Equador? Integração e cooperação – O ideário de Vargas estava rigorosamente presente no mais recente encontro de Lula e Chávez em Manaus. Ante perguntas da imprensa sobre como enfrentar a crise financeira do capitalismo os dois mandatários coincidiram na condenação da irresponsabilidade do fundamentalismo econômico que transformou economia em cassino.
E também quanto à necessidade de desenvolver o mercado interno, expandindo a economia real, verdadeira, produtiva, e consolidar a integração sul-americana, pois, conforme ressaltou o presidente brasileiro, “como maior economia na região o Brasil tem obrigação de ser solidário com os países de economia mais frágeis, para que todos cresçamos juntos” Desde Vargas não se ouve um presidente do Brasil falar com semelhante lucidez e visão estadista. Foi preciso um operário chegar ao Palácio do Planalto para que a política externa brasileira superasse a fase da diplomacia de pés descalços do ex-chanceler Celso Lafer e reaprendesse a praticar os conceitos de soberania, independência, solidariedade e desenvolvimentismo. Tudo junto, seguindo o estabelecido na Constituição Brasileira, muito citada, mas nem sempre cumprida: a integração latino-americana é objetivo da Republica Federativa do Brasil.
Assim como os elogios de Chávez a Vargas, também produziram desconcertos as declarações de Trotsky que, em 1938, considerava positivamente os processos nacionalistas de Vargas como de Cárdenaz, que lhe concedeu asilo no México. Para Trotsky eram como uma espécie de “bonapartismo suy generis, com conteúdo progressista”, chegando mesmo a recomendar que diante de um eventual conflito entre Brasil e Inglaterra, os revolucionários deveriam posicionar-se ao lado do Governo Vargas, mantendo sua independência crítica, contra o imperialismo inglês. Não por acaso Chávez recorda tanto Trotsky, quanto Vargas, numa espécie de síntese das forças históricas que apontavam para o progresso naquela etapa. O Banco do Sul e a nacionalização dos seguros – Diante dos excelentes resultados que a relação bilateral Brasil-Venezuela, animada por uma madura relação dos dois presidentes, apesar da alta dose de intrigas midiáticas de que tem sido vítima, soa realmente incompreensível a insistência de segmentos importantes da sociedade brasileira, particularmente no estamento militar, em rejeitar este processo de crescente cooperação entre estes dois países, cujo passo seguinte, muito provavelmente, desaguará na incorporação da Venezuela ao Mercosur. Que os interesses imperiais se oponham a este curso cooperativo é compreensível. O império quer submissão, incomoda-se com qualquer cooperação, sobretudo, quando dela está ausente, quando nela não dá as ordens e quando ela fortalece a emergência de um novo mapa geopolítico regional, mas também internacional.
Os empresários brasileiros que têm hoje extraordinárias oportunidades de vender equipamentos, serviços e tecnologia para a Venezuela, não possuem qualquer objeção lógica para rejeitar o ingresso da Venezuela no Mercosur. É meio suicida capitalista que não quer expandir mercado….Ao contrário, hoje os sinais de turbulência e instabilidade partem da economia norte-americana, cuja predominância sobre as operações brasileiras foi providencialmente reduzida, por uma opção política que questionou, embora timidamente, o “fundamentalismo de mercado”, e encoraja o fortalecimento de relações sólidas com as economias da América do Sul, recomendando apostar num novo curso de desenvolvimento regional, marcado pela integração, inclusive com a adoção de instituições financeiras e até mesmo de moeda própria, tal como o já criado Banco do Sul, lamentavelmente ainda não em operação. O Banco do Sul oferece a oportunidade de depositar as reservas sul-americanas em porto mais seguro que os instáveis bancos do centro da economia virtual e especulativa, onde a moeda, o dólar, vem sendo emitida sem qualquer lastro. Todos estes foram problemas analisados por Vargas que sempre os encarou a partir de um projeto soberano para o Brasil e para a América Latina também. E diante das sombras imprevisíveis na economia dita desenvolvida, vítima se seu próprio veneno, cabe estranhar a demora injustificável para a instalação definitiva do Banco do Sul no qual os países que têm ativos reais, riqueza física, poderiam resguardar mais eficientemente suas reservas e emprega-las apenas em projetos de desenvolvimento cooperativo com efeitos benéficos para o conjunto da região que já deu sinais políticos nítidos, pela mobilização de seus povos, de não querer mais aceitar viver sob “a maldição do petróleo”. Face à necessidade de adoção de medidas protetoras da economia nacional, cabe pedir reconsideração da quebra do monopólio estatal dos seguros e resseguros, instrumento criado na Era Vargas ante a ameaça das turbulências da guerra e agora injustificavelmente anulado, permitindo a contaminaçào de seguradoras transnacionais envoltas no “cassino irresponsável” condenado pelo próprio Lula, que sancionou a lei. Ainda é tempo. De todo modo, é salutar que pela palavra instigante do presidente Hugo Chávez se renove o debate e a consciência sobre a importância da Era Vargas para o desenvolvimento autônomo brasileiro, cujos efeitos se fazem notar na alavancagem que alguns daqueles instrumentos varguistas exercem hoje para que a Venezuela supere mais rapidamente – já como território livre de analfabetos – a herança nefasta deixada pelo não-desenvolvimento programado de quando esteve sob a era da rapina apelidada de “a maldição do petróleo”.
(*)Beto Almeida, Diretor de Telesur 12 de outubro de 2008
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