Por FC Leite Filho
No Brasil, o casal José (Pepe) Mujica, o novo presidente do Uruguai, empossado ontem, e a mulher Lucia Topolansky, sua companheira de guerrilha e atual presidente do Senado, poderia sugerir um arranjo familiar no mínimo suspeito, nestes tempos de dinheiro na meia de deputados. Ledo engano. O casal é um exemplo raro de abnegação e desprendimento, além de grande visão administrativa e política, como se vai observar ao longo deste relato.
Pepe, como prefere ser chamado este novo rebento da horta dos presidentes progressistas da América Latina, é ainda despojado e largadão. Foi sem gravata receber a faixa presidencial, transferiu a cerimônia de transmissão do cargo da suntuosidade do palácio para a simplicidade da praça pública e, para as massas, fala o lunfardo (a língua do tango, uma variante do espanhol, muito usada pelo operariado no Rio da Plata, a região que ainda hoje mistura uruguaios e argentinos num mesmo território, ou balaio, se preferirem).
Se se penetrar na plataforma que empolgou seu povo, este ex-guerrilheiro tupamaro, de 75 anos, antes mais conhecido pelas fugas espetaculares da cadeia, onde passou 14 anos, dois meses dos quais com as mãos atadas com arame, e os confrontos com a polícia da ditadura, num dos quais recebeu seis tiros, emerge como portador de uma autêntica mudança.
O escritor Eduardo Galeano, autor de “As veias abertas da América Latina”, convidado para a cerimônia popular, afirmou que Mujica “é o presidente que mais se parece, de todos os que durante anos temos tido, ao que somos, às raízes mais fundas da identidade nacional, simples, em que se reconhece a gente, por isso é que desperta tanto entusiasmo”.
Sua proposta é de transformar o Uruguai num país agrointeligente, que, em resumo, pode traduzir-se num imenso parque para exportação de tecnologia, particularmente no já cobiçado setor agrícola e alimentar. A mensagem caiu fundo entre os uruguaios, historicamente inconformados com a pequenez de seu país (176.220 km2 e 3,2 milhões de habitantes, quase sete vezes menor do que a Grande São Paulo). Imprensado entre os gigantes Brasil e Argentina, este povo tiquito entusiasmou-se com a idéia, que não é só de Pepe, mas do conjunto da Frente Ampla, o partido de esquerda à frente do governo, pelo segundo mandato consecutivo. O antecessor Tabaré Vásquez já tinha dado um importante passo naquela direção, ao distribuir 400 mil laptops plugados na internet para todos os alunos e professores das escolas públicas do ensino fundamental.Trata-se do Plano Ceibal, um dos mais arrojados programas educacionais do planeta.
Aqui, a pequenez do país funciona mais como solução do que como problema. Quando é que o Brasil poderia se dar a esse luxo em matéria de informática? Daí que a meta de Mujica é de utilizar essas engenhocas num grande programa educacional, com ênfase no inglês, capaz de tornar a população bilingue e depois num viveiro de cérebros. Caberá agora a Pepe Mujica engajar o país num mutirão para para desenvolver a pesquisa.
Como relata a revista Carta Capital, em artigo de Cynara Meneses, “o ex-guerrilheiro plantador de flores e acelgas, e que pessoalmente abomina os computadores, sonha transformar o pequeno país em uma potência biotecnológica que em vez de exportar carne, exporte o conhecimento”. Este conhecimento, segundo ainda a jornalista, tornou possível aos uruguaios, por exemplo, terem aumento de produção sem ampliar o rebanho. Que em lugar de vender novilhos, venda sêmen. Em suma, fazer do Uruguai uma nação agrointeligente”.
“Mujica aposta não só na educação como numa nova orientação vocacional voltada à especialização em biologia, o que possibilitará o desenvolvimento de vacinas, defensivos orgânicos e insumos de maneira geral para exportação – continua Cynara Menezes. Pretende atrair os grandes laboratórios a se instalar no Uruguai, “a maior reserva agrícola do mundo”, pela criação de uma zona franca tecnológica. Com a exigência de que 90% do pessoal seja contratado no país, para impedir o êxodo de pesquisadores que ocorre atualmente. A ideia, ao que tudo indica, ecoou entre os jovens. Mujica recebeu 64% dos votos dos uruguaios de 18 a 29 anos”.
Engana-se quem achar que, com essa mensagem sofisticada, Pepe vá descuidar da pobreza, que cresceu muito nesses últimos tempos neoliberais, ainda que seja infinitamente menor do que entre os brasileiros, mesmo em termos proporcionais. Ele já avisou que “seremos quase ortodoxo na macroeconomia, mas “vamos compensar largamente sendo heterodoxos, inovadores e atrevidos em outros aspectos”, em que ele costuma incluir a pobreza e os problemas de saúde e de moradia da população.
Pepe Mujica é igualmente determinado na defesa da integração latino-americana. Falando diante de um público heterogêneo que iam desde a secretária de Estado norte-americana, Hillary Clinton, e os presidentes Álvaro Uribe, da Colômbia, Hugo Chávez, da Venezuela, e Crisitna Kirchner, da Argentina, ele foi direto: “Continuamos fracassando ao tentar fazer a pátria grande, pelo menos até gora, mas não perdemos a esperança, porque estão vivos os sentimentos, do Rio Bravo às Malvinas, vive uma única nação, a nação latino-americana”.
Ele também se mostrou aberto ao diálogo, mas avisando: “Vamos buscar o diálogo, não porque somos bonzinhos ou mansos, mas porque acreditammos que esta ideia da complementariedade é a que melhor se ajusta à realidade de hoje. Finalmente, ele fala em abrir o Uruguai para o mundo: “Não vamos esperar de braços cruzados que nos traga o destino ou o mercado, vamos sair a buscá-lo”.
José Mujica chega ao governo com maioria no parlamento tendo a sorte de contar a esposa Lucia Topolanski como presidente do Senado, não por obra de arranjo político, mas por ser ela altamente popular e ter recebido a maior votação no último pleito. Ex-guerrilheira e colaboradora (foi sua suplente no Senado), Lucia já avisou que não vai morar na residência oficial de Suárez, que quer transformar na sede da nova Agência de Ciência, Tecnologia e Inovação.
Mulher bonita na juventude, Lúcia se diz desprendida de vaidade, como confessou à repórter Regina Alvarez, do Globo: “Aos 20 anos tinha cabelos longos e gostava de minissaia. Depois, provavelmente, por causa dos longos anos de cárcere, que decantam tudo o que é superficial transcendental, a gente aprende a viver como diz o poeta (espanhol Antônio) Machado: leve quase nu”. O casal vai continuar morando na chácara em que vivem como cidadãos comuns nos arredores de Montevidéu.