(Publicada originalmente em Sex, 20 de Novembro de 2009 14:50)
Por Reynaldo Domingos Ferreira
A natureza, para quem não consegue domá-la, é como se fora uma fogueira acesa, uma verdadeira igreja de Satanás, de acordo com o argumento desenvolvido, em tom trágico, sem lógica definida, pelo polêmico cineasta dinamarquês Lars von Trier, em Anticristo, que propiciou o prêmio de Melhor Atriz a Charlotte Gainsburg, no último Festival de Cannes.
A plasticidade é, portanto, além das interpretações, a característica dominante da película, que tem um magistral prólogo monocromático, captado pela câmara lenta de Anthony Dod Mantle, sem diálogo, em que a música de Haendel ( a ária Lascia ch´io pianga, da ópera Rinaldo) antecipa o sacrifício. É como se fora um ritual. Por si só esse prólogo, impregnado das cruas figurações do amor e da morte, é uma obra-prima.
A narrativa é feita em quatro capítulos – Luto, Dor, Desespero, Os Três Mendigos – e um epílogo. Trata da imolação de uma mãe (Charlotte Gainsburg), que se sente culpada pela perda de um filho. Para sublinhar a tese de que em cada ser humano reside uma fera pronta a atacar, principalmente se lhe for ameaçado o instinto da maternidade, apenas o prólogo é sediado por von Trier no meio urbano, já que o cenário propício da tragédia não poderia ser outro senão o de uma imensa floresta, berço de seres primitivos.
Após o enterro do filho, a mãe, uma escritora, fica, por alguns dias, desacordada, num hospital. O marido (Willem Dafoe), psicanalista, decide ser o responsável – do que se arrependerá um pouco mais tarde – pela terapia a lhe ser aplicada a fim de livrá-la da depressão. Para tanto, ele a convence a abandonar os remédios, que lhe foram ministrados no hospital, para ver se ela, aos poucos, identifica e supera traumas e medos adquiridos desde a infância.
É pelo conhecimento de alguns desses problemas psíquicos da mulher que o casal se transfere para o meio de uma floresta, densa e povoada de feras, onde existe uma cabana, erguida sob frondosos carvalhos. Essa particularidade vai dar ao encenador von Trier a possibilidade de criar atmosfera de opressão e de pânico para o casal, tendo em vista que das árvores se desprendem bolotas, que caem constantemente sobre o teto da cabana.
Em termos estéticos, o realizador de Os Idiotas procura dar à sua mise-en-scène, tom de contestação a muitas das ideias que ele vai propondo ao raciocínio do espectador, como se fora uma miríade de sonhos. Por sinal, ele declarou que o filme foi realizado, de forma anárquica, numa fase em que sofria de profunda crise depressiva. No caso, por exemplo, von Trier não identifica Deus com a natureza. De maneira alguma. A natureza é sempre má. É uma criação demoníaca. Mas a sua ambientação, por mais contraditória que seja, lembra a de Ingmar Bergman, panteísta famoso, de Morangos Silvestres.
Como Bergman, também von Trier tem vasta experiência teatral, demonstrada particularmente em Dogville. Por isso, sabe extrair dos atores as nuanças de que precisa para expor suas obsessões pessoais, bem como o seu desejo de delas se libertar (la libertà, de que fala a ária de Haendel). Sob esse aspecto, tanto Gainsburg como Dafoe foram por ele orientados para criar dois tipos que se atraem e, ao mesmo tempo, se rejeitam.
Em vista disso, os dois atores estão perfeitos. Gainsburg é uma mulher chorona, maquinadora, que quer punição, de qualquer jeito, para o marido, que a possuía no momento em que o filho saltou da janela. Dafoe é o terapeuta, que se convence de que quanto mais ele, no tratamento equivocado, faz concessão à sua paciente, levado muitas vezes pela voracidade sexual, que o domina, mais ela procura meios de eliminá-lo. É o duelo forte, que vai até o final.
REYNALDO DOMINGOS FERREIRA
FICHA TÉCNICA
ANTICRISTO
ANTICHRIST
Dinamarca/Alemanha/Itália/ França/ Polônia/Suécia/2009
Duração – 109 minutos
Direção – Lars von Trier
Roteiro – Lars von Trier
Produção – Meta Louise Foldager
Fotografia – Anthony Dod Mantle
Edição – Anders Refn
Elenco – Willem Dafoe (Ele), Charlotte Gainsburg (Ela)