(De Buenos Aires, 30.10.13, por FC Leite Filho) Até ontem pela manhã, a impressão generalizada era que, com a arrasadora derrota eleitoral do governo no domingo, 27 de outubro, a lei de mídia (aqui chamada ley dos medios) jamais seria aplicada na sua totalidade. Refém das grandes cadeias de comunicação, à frente o gigantesco Clarín, a Suprema Corte argentina vinha cozinhando a vigência da lei, aprovada por grande maioria do Congresso, havia mais de quatro anos. Depois dos resultados eleitorais favoráveis ao domínio dos monopólios, a ilação natural era de que a justiça se lhes tornaria ainda mais subserviente, podendo até mesmo revogar a norma no seu conjunto.
Eis, porém, que, em menos de 48 horas de abertas as urnas de um pleito marcadamente influenciado pelo poder econõmico, a Corte, numa dessas voltas caprichosas da história, que levam tempo para ser entendidas, dá uma cambalhota e referenda toda a lei, de uma só penada. Dessa forma, os quatro artigos (41, 45, 48 e 161) embargados na justiça por pressão do grupo, obrigando-o a desfazer-se de dois terços de seu império de quase 300 licenças do espectro radiolétrico, já passam a viger automaticamente e sem mais direitos a apelação, a não ser nas cortes internacionais.
Para entender a dimensão desse grupo comunicacional argentino, mais conhecido pelo nome de seu jornal Clarín, o distinto leitor poderá fazer as contas, aumentando em duas ou três vezes o poder já avantajado da nossa Rede Globo. Isso porque o grupo, hoje dirigido pelo maquiavélico Héctor Magnetto, concentra em suas mãos o monopólio das TVs abertas e a cabo, as rádios, os jornais e a internet, além de alguns fundos financeiros. Tal poder é usado, despoticamente, para perseguir, achacar, humilhar e desmoralizar adversários, inclusive governos que não rezem pela sua cartilha, negando-lhes qualquer direito de defesa.
Magnetto é um contador que, ao longo de uma carreira na casa, iniciada em 1971, aos 27 anos, passou todo mundo para trás, inclusive a família do fundador Roberto Noble, hoje representada pela viúva Ernestina Herrera e os dois filhos adotivos desta, Marcela e Felipe. Ele abocanhou 82% de suas ações, que ontem mesmo começaram a despencar nas bolsas de Londres e Buenos Aires, com a notícia da constitucionalidade plena da lei de mídia.
Até ali, o império midiático seguia impávido e ditando a pauta a todos governos e instituições, Tal excrescência, gerada pelas ditaduras militares e os regimes neoliberais, que o Clarín, à frente de outros conglomerados, patrocinou, incentivou e controlou, desabridamente, desde que se tornou o maior jornal do país, em 1969, acabou provocando a reação da sociedade. Esta se mobilizou e vinha lutando, estoicamente, enfrentando a inércia, a leniência e até a conivência de quase todos os presidentes eleitos ou impostos, desde então.
A chegada de Néstor e Cristina Kirchner ao poder, a partir de 2003, possibilitou o encaminhaento de um projeto de lei ao Congresso, em 2009, depois de debatido em 24 fóruns nas diversas províncias e tendo como base os 21 pontos do documento produzido, em 2004, pela Coalizão por uma Radiodifusão Democrática.
O que diz a lei de mídia – O projeto foi aprovado por contundente maiora (só no Senado, por 44 votos contra 24), depois de receber mais de 100 emendas, e sancionado pela presidenta da República, em 10 de outubro daquele ano, tornando-se a a Lei 26.522 de Servicios de Comunicación Audiovisual.
Basicamente, a lei dispõe que os serviços de comunicação social sejam equitativamente fornecidos em um terço pelo setor privado, um terço por entidades sem fins lucrativos (universidades, fundações, igrejas, sindicatos, movimentos sociais e culturais) e um terço pelo governo, nos seus âmbitos nacional, provincial e municipal.
Para adequar-se à norma, os grupos monopolistas, como o Clarín e o La Nación, segundo jornal do país, por exemplo, terão de desafazer-se de seu patrimônio e ainda obedecer outros itens desconcentradores: nenhum grupo privado poderá possuir mais de um canal de rádio ou TV numa cidade, tendo de escolher, se aberto ou por cabo, nem alcançar mais de 35% do território nacional.
A lei ainda estabelece cotas mínimas com vistas a proteger e estimular a produção nacional e local. Tais cotas, que não foram afetadas pelas impugnações do Clarín, já vêm funcionando e são responsáveis pela criação de cerca de 100 mil empregos no campo audiovisual. Várias cooperativas e microempresas se formaram desde a vigência da lei, propiciando um novo panorama de diversidade e democratização.
Na contramão dessa nova realidade, o monopólio do Clarín derivara para uma verdadeira ditadura midiática, alimentada com o falso argumento da liberdade de expressão e direito à crítica ao governo, quando na verdade o que prevalecia eraa imposição do pensamento único, sem quaquer chance do contraditório e muito menos do direito de resposta das pessoas e instituições afetadas.
Nesta última eleição, para citar um exemplo, a mídia pintou e bordou, com seus esquemas mafiosos para perseguir, desmoralizar e linchar reputações de candidatos indesejáveis, principalmente os patrocinados pelo governo Kirchner, disseminar boatos de alta do dólar e da inflação e incentivar atos de desobediência civil, em franca manobra desestabilizadora.
Como era detentora do controle e monopólio da iformação e não permtia o direito de defesa, a mídia acabava impondo a sua versão a milhões de incautos eleitores. Estes, consequentemente, votaram numa oposição comprometida com a volta do neoliberalismo, que representa a negação dos progressos obtidos nos 10 anos do atual governo, como a criação de empregos, o aumento real dos salários, garantias e reajustes das aposentadorias, construção de escolas e universidades, ênfase na educação e tecnologia, com a formação de 10 mil engenheiros por ano.
Finalmente, cabe uma palavra sobre a tão alardeada derrota eleitoral do governo, no domingo. Inicialmente, uma perguntiha: terá sido ela pior do que a de 2009? Recorde-se que, nesse pleito, Néstor Kirchner, o marido e antecessor da presidenta, a qual mal havia assumido, foi derrotado como primeiro deputado de Buenos Aires, juntamente com um magote de outros candidatos governistas, fato que resultou na perda eventual da maioria do Congresso.
Ocorre que na eleição de dois anos depois, em 2011, já sem o marido, que morrera de um enfarto fulminante em 2010, Cristina foi reeleita presidenta, com 54,1% (o segundo candidato foi o socialista Hermes Binner, com 17%, e a maior opositora, a atual deputada Elisa Carrió, com 1%) e conquistou confortável posição no Congresso. Agora, novamente derrotada, mas conservando a maioria na Câmara e Senado,a presidenta, que deverá sair do período de convalescência que a inabilitou no auge da camaha, no próximo dia oito de novembro, manda avisar que nada vai mudar: seu modelo nacional cotinuará a mesma trilha de desenvovimento com inclusão social e de reindustrialização, para gerar emprego e renda. A oposição que trate de justificar sua impotência no projeto de reversão ao neoliberalismo com a sua estrondosa e midiatizada vitória.