domingo, novembro 10, 2024
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Cristina Kirchner lança livro e propõe contrato social

Por Helena Iono, de Buenos Aires

A ex-presidenta Cristina Kirchner lançou no dia 9 de maio seu livro, “Sinceramente”, uma memória biográfica de cerca de 600 páginas publicado pela Penguim Ramdon House (matriz da Editora Sudamericana), nesta 45a. Feira Internacional do Livro de Buenos Aires, já com a 3a. edição esgotada, 300 mil livros vendidos, um best seller em poucos dias, jamais visto na Argentina e já com outros milhares chegando às portas da sua reedição.

A previsão é de que se chegue a meio milhão de exemplares. Um grande êxito, sem contar a enorme circulação deste livro em venda digital ou formatos pdf pirateados. O livro até tornou-se texto de estudo em grupos abertos de discussão nos bairros, semanalmente, capítulo por capítulo, suprindo coletivamente a dificuldade financeira da cidadania. Além da leitura, a importância que os argentinos dão, é possuir o livro em papel, encapado com carinho; guardado como obra histórica na biblioteca, como o famoso “A razão da minha vida” de Eva Peron; ou, sobretudo, carregado, exposto nos braços, nas ruas para dizer: “Olhem aqui, quem deve voltar a nos governar!”. O sucesso do livro passa a ser um fenômeno político que levou até mesmo a mídia hegemônica a compará-la com Garcia Márquez (Clarin), ou com Perón (La Nación).

Em meio à chuva

A mais ampla sala da Feira, a Jorge Luís Borges, superlotou com convidados do campo da cultura e da política, dirigentes sindicais, legisladores, defensores dos direitos humanos; nas adjacências internas e até externas à feira, milhares de cidadãos comuns junto a ativistas de movimentos sociais concentravam-se num ato comovedor para ouvir a fala de Cristina Kirchner, assistindo sua apresentação via telões.

Um contraste interessante com o fato de que isso tenha se realizado dentro de uma área da Sociedade Rural Argentina, que abriga stands de grandes editoras e empresas midiáticas; e que tenha recebido a interdição oficial do trânsito fora, em parte da avenida Sarmiento para que o ato solidário a Cristina pudesse se realizar. O fato é que “Sinceramente” passou a ser o livro da esperança, que rompe o marasmo de uma Feira de Livro esvaziada e decaída em 15% de suas vendas.

Não obstante uma chuva torrencial que desabou sobre o que teria sido uma multitudinária manifestação, houve um fluxo comovedor de mulheres e jovens ensopados, mas entusiasmados, sob guarda-chuvas gritando “Cristina presidenta!”; um clamor popular alentando seu indispensável protagonismo para dar novos rumos à Argentina; essa, sim, afogada no arrocho econômico-social dos últimos 3 anos e meio de Macri e “Cambiemos”. O sucesso deste livro, abordando a vida, experiências humanas e políticas de uma mulher dirigente, nas funções de ex-presidenta (2 gestões seguidas), ex-deputada provincial e federal, e agora, senadora (Unidade Cidadã), Cristina Kirchner, reflete um despertar popular, uma esperança para resgatar, nas eleições de outubro de 2019, as conquistas sociais, o fortalecimento do Estado, dos últimos 7 anos do seu governo abordados no “Sinceramente”.

Este livro, comentado e sugerido no Brasil, por FC Leite Filho, é também uma narrativa detalhada dos ataques judiciais e midiáticos dos poderes econômicos hegemônicos, sofridos pela ex-presidenta e seus familiares; uma contribuição à conscientização sobre as maquinações do lawfare na América Latina do qual é também vítima Lula da Silva junto ao povo brasileiro. O livro de Cristina faz um sucesso ascendente. Os “cadernos” publicados pelo juiz Bonadio começam a pegar fogo com o tal do D’Alessiogate.

O DISCURSO DE CRISTINA

discurso de Cristina no lançamento foi curto, uns 40 minutos, respeitando os limites de tempo das apresentações de livro. Mas, neste breve arco de tempo, concentraram-se no mesmo lugar duas forças potentes da Argentina para pintar um quadro de esperança: Cristina Kirchner e um povo que não se rende.

Não era de se prever no âmbito da Feira de livro, o que muitos esperavam, uma declaração por sua candidatura presidencial. Não se ateve a repetir aspectos importantes do seu livro, das medidas econômico-sociais implantadas pelo seu governo, nem em agitar quão necessário é recuperá-las. O povo já vive, de carne e osso a dura realidade atual. Já na leitura dos 300 mil exemplares por si, está boa parte do recado, sobre um projeto golpeado de país, incompleto, mas realizável, e a ser resgatado;  mas na apresentação do livro, Cristina Kirchner deu um novo passo; destacou a perspectiva do futuro, da necessidade de unir forças, de estabelecer alianças para a reconstrução, evitando o enfrentamento; nem citou o responsável pela demolição, Macri, como o faz em atos massivos e da militância. Como dito por Roberto Caballero, diretor da revista “Contra Editorial”, viu-se uma Cristina que guardou a espada jacobina.

O centro do seu discurso foi o chamado a um “Contrato Social de Cidadania Responsável”, que inclua “empresários, dirigentes sindicais, operários, cooperativistas, e pessoas que tenham um plano de trabalho”; “um contrato social entre todos os argentinos e argentinas, com metas verificáveis, quantificáveis…”. Remarcou que não há como desenvolver a economia se não há mercado interno. Dirigiu-se ao setor empresarial: “é necessário dirigentes empresários que pensem na economia como instrumento de desenvolvimento do país e não somente pessoal”. “Para que uma empresa ganhe, todos têm que ganhar e comer; senão, é muito difícil”.

Cristina Kirchner recordou o exemplo do Pacto Social no terceiro governo de Perón com o industrial nacional, José Ber Gelbard, também ministro da economia. Nessa época Gelbard, com Câmpora e Perón, fez um plano que, entre outras, manteve 300 produtos na cesta básica com preços congelados, e acordos de salários estáveis. Cristina recordou que, depois, alguns setores industriais, rompendo o pacto, pressionaram a renúncia de Perón que, pela rádio em 12 de junho de 1974, comunicou ao povo a situação. Os sindicatos decretaram imediatamente greve geral e mobilizaram-se milhares na Praça de Maio no seu apoio. Perón discursou: “Levo nos meus ouvidos a mais maravilhosa música que, para mim, é a palavra do povo argentino”.

O tempos passaram, a conjuntura econômica atual é outra; é de um capitalismo mundial falimentar e os limites dos acordos se restringem; é previsível que um contrato social sofrerá tensões.  Mas é muito significativa a referencia a esse fato histórico de 1974, por alertar que o “Contrato Social de Cidadania Responsável” deve assegurar os direitos e o poder aquisitivo dos trabalhadores. Cristina Kirchner pode afirmar isso com propriedade, pois é a única, entre todos os possíveis aliados ao peronismo-kirchnerismo dentro de um Pacto Social opositor a Macri, que tem o maior poder de mobilização social. Na despedida do seu governo em dezembro de 2015, Cristina Kirchner atraiu uma massa de 700 mil na Praça de Maio; à altura de Perón e Evita.

Ao referir-se a este fato histórico, Cristina evidencia, que não aceita dialogar com o falso acordo de 10 pontos proposto, recentemente, pelo governo de “Cambiemos” a algumas forças opositoras. Macri pede socorro às vítimas, após incendiar o país e entregá-lo ao FMI. São 10 pontos onde não se contempla a sobrevivência dos excluídos, dos trabalhadores ou médios e pequenos empresários. Cristina lançou o “Sinceramente” com vários recados; inclusive este: “Nós, os argentinos não somos neutrais. Eu não sou neutral, não fui nunca, não quero ser e nem vou ser”.  O “Contrato Social de Cidadania Responsável”, por ela proposto, inspira uma unidade com ampla participação, mas com programa e controle social.

O debate lançado em torno do livro de Cristina Kirchner dá indicadores de sua provável candidatura. Neste meio de cultura e sendo a personalidade política com maior aceitação eleitoral em concorrência com Macri, seria ilógico que a aliança opositora não a considerasse. Está aberto um grande debate. A realização de um Contrato social, provável base para uma aliança eleitoral opositora, requer um urgente conteúdo programático. Discute-se que a força principal para assegurar o pacto social deverá ser aumentar o poder organizativo e programático dos sindicatos e trabalhadores. O deputado nacional (Unidade Cidadã) e dirigente sindical Hugo Yasky (CTA) chama a uma formação única de todas as centrais sindicais, que englobe a todas: as duas CTAs, CGT, CTEP, Corrente Federal, etc… O livro de Cristina não surgiu do nada; surge desta vontade popular de unir-se e por um fim à depressão, à tensão, à opressão de classe, e à discriminação social, contando com o outubro de 2019. Enfim, ficou evidente que não é um livro, é muito mais que um livro.

leitefo
leitefo
Francisco das Chagas Leite Filho, repórter e analista político, nasceu em Sobral – Ceará, em 1947. Lá fez seus primeiros estudos e começou no jornalismo, através do rádio, aos 14 anos.
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