(Publicado originalmente em Sex, 10 de Julho de 2009 11:39)
Por FC Leite Filho
A situação de facto imposta a Honduras, com a derrubada do presidente constitucional Manuel Zelaya, expõe a guerra surda que vem travando os Estados Unidos com os movimentos de autonomia ensaiados por alguns países na América Latina. Nesta guerra, como ficou evidente na prisão e deportação de Zelaya, não funcionam pruridos ou cláusulas, pétreas ou não, em defesa do regime democrático.
É verdade que a violação flagrante do artigo 21 da Carta Democrática foi respondida com a suspensão do país centro-americano do seio da OEA (Organização dos Estados Americanos), pela decisão unânime de seus membros, inclusive dos norte-americanos. Ao mesmo tempo, quase todos os países, à exceção dos Estados Unidos, Israel e Taiwan, retiraram seus embaixadores. Organismos internacionais ameaçaram com cortes na assistência econômica. Não obstante, o regime usurpador de Roberto Micheletti continuou impávido, como se nada tivesse acontecido, e o presidente deposto, exilado, sob ordem de prisão se voltar ao país.
Tal situação leva a crer que não se deve esperar muito das negociações empreendidas pelo presidente da Costa Rica, Oscar Arias, que, a pedido da secretária de Estado norte-americana Hillary Clinton, vem realizando com as partes envolvidas, na capital San José. No conflito, tende a prevalecer quem tiver mais cacife, sobretudo popular, fato que só os acontecimentos poderão mostrar daqui para a frente.
Por enquanto, o regime de Micheletti leva a melhor. É apoiado e sustentado pela elite política, econômica e militar de Honduras, com o respaldo, não declarado, mas decidido dos Estados Unidos, como ficou patente na ação da diplomacia daquele país ao longo da crise. De outro lado, o regime golpista vem enfrentando protestos generalizados da população. Esta se levantou desde o primeiro momento da quartelada, apesar da suspensão das garantias constitucionais, da censura e da repressão indiscriminada. Mas ainda não alcançou o nível de superioridade que demonstrou a população venezuelana, ao reagir ao golpe contra o presidente Hugo Chávez, em 2002, desencadeado pelo mesmo esquema de forças acionado em Honduras.
O quadro é diferente, porque Zelaya não dispõe dos setores organizados então construídos por Chávez. Seu país é pequeno, não tem a força do petróleo e é seriamente dependente dos Estados Unidos. Detentor de quase todo o aparato militar hondurenho, que equipou e treinou, inclusive com uma base de 556 oficiais, além do controle da economia do país, a potência do norte poderia abortar o golpe no seu nascedouro.
Apesar da retórica parecer contrária ao golpe, os norte-americanos optaram por priorizar sua estratégia de desgaste e fustigamento dos governos progressistas, liderados pela Venezuela. Tais países – Bolívia, Cuba, Equador, Nicarágua e, de certa forma, a Argentina e Paraguai – buscam não só se livrar da inflluência norte-americana, como também a construção de um polo próprio de poder, com base em seu potencial energético e alimentar. Não se deve omitir que o Brasil, à frente o Governo Lula, tem dado respaldo discreto a esses países.
Honduras, pelas mãos do presidente constitucional, Manuel Zelaya, havia aderido aqueles países, tendo inclusive ingressado na Alba – Aliança Bolivariana da América Latina. E isto era inadmissível para os norte-americanos e seus associados locais. O pequeno mas estratégico país da América Central vinha há um século funcionando como trampolim para quase todas as ações de interferência de Washington no subcontinente, inclusive a invasão de países, como Cuba, República Dominicana, Panamá, Nicarágua e Granada.
O episódio, no entanto, serviu para exacerbar uma região que vinha se estabilizando há algum tempo. É que, qualquer que seja o desfecho, a tensão tende a aumentar e se espalhar para outros países limítrofes e, por irradiação, para os outros países latino-americanos, particularmente aqueles aliados à Venezuela.
E desta vez com um componente distinto, que é a capacidade dos latino-americanos de reagir e também de denunciar ao mundo às tentativas golpistas. Ao contrário do que acontecia na década de 1970, os generais, em combinação com os Estados Unidos, tomaram o poder sem resistência em 30 das 34 nações e a vil anuência da OEA.
Hoje, a OEA parece mais voltada para seus irmãos do sul, como ficou demonstrado na reunião de San Pedro de Sula, em Honduras, com a revogação da expulsão de Cuba do organismo e a decisão de condenar e suspender o regime golpista daquele país.
Tal reação se deve ainda à capacidade que demonstram aqueles países autônomos de reestruturarem seu aparato militar, de inteligência, e sobretudo de comunicação de massas. A Telesur, a rede fruto de uma operação conjunta da Venezuela, Uruguai, Argentina, Bolívia, Cuba, Equador e Nicarágua, levantou-se como uma voz uníssona, ocupando as 24 horas do dia, para denunciar cada momento do golpe e das reações a ele. Com isso, a rede multiestatal, atuando com base nos satélites independentes construídos pela Venezuela em colaboração com a China, se transformou na grande fonte de informação e formação de opiniões da América Latina, livre da ingerência e das manipulações das redes de TV, jornais e rádios das grandes potências.
Carta Democrática da OEA (Assinada em Lima, em 11/09/2001)
Artigo 20
Caso num Estado membro ocorra uma alteração da ordem constitucional que afete gravemente sua ordem democrática, qualquer Estado membro ou o Secretário-Geral poderá solicitar a convocação imediata do Conselho Permanente para realizar uma avaliação coletiva da situação e adotar as decisões que julgar convenientes.
O Conselho Permanente, segundo a situação, poderá determinar a realização das gestões diplomáticas necessárias, incluindo os bons ofícios, para promover a normalização da institucionalidade democrática.
Se as gestões diplomáticas se revelarem infrutíferas ou a urgência da situação aconselhar, o Conselho Permanente convocará imediatamente um período extraordinário de sessões da Assembléia Geral para que esta adote as decisões que julgar apropriadas, incluindo gestões diplomáticas, em conformidade com a Carta da Organização, o Direito Internacional e as disposições desta Carta Democrática.
No processo, serão realizadas as gestões diplomáticas necessárias, incluindo os bons ofícios, para promover a normalização da institucionalidade democrática.
Artigo 21
Quando a Assembléia Geral, convocada para um período extraordinário de sessões, constatar que ocorreu a ruptura da ordem democrática num Estado membro e que as gestões diplomáticas tenham sido infrutíferas, em conformidade com a Carta da OEA tomará a decisão de suspender o referido Estado membro do exercício de seu direito de participação na OEA mediante o voto afirmativo de dois terços dos Estados membros. A suspensão entrará em vigor imediatamente.
O Estado membro que tiver sido objeto de suspensão deverá continuar observando o cumprimento de suas obrigações como membro da Organização, em particular em matéria de direitos humanos.
Adotada a decisão de suspender um governo, a Organização manterá suas gestões diplomáticas para o restabelecimento da democracia no Estado membro afetado.
Veja ainda:
Telesur é como o Twitter na AL (em inglês)
Declarações de Hugo Chávez (video)