(Publicado originalmente em Seg, 18 de Maio de 2009 19:28)
Ninguém pode negar o papel quase decisivo que a Folha de S. Paulo desempenhou na Campanha das Diretas-Já, como, de resto, no último processo de redemocratização. O jornal paulista abriu espaço para as diversas correntes, inclusive as vinculadas à luta armada, para defender suas posições e seus direitos à livre expressão e à participação política. Era um jornal arejado, progressista, inovador e até ousado em suas posições. Como empresa, o jornal evidentemente ganhou dinheiro porque pegou a onda certa (o anseio irreprimível pelo fim do regime militar), além de ter-se afirmado como um grande veículo de alcance nacional, o que não era antes.
Não importa o passado de íntima e promíscua colaboração do jornal com o regime, como ocorreu com todos os outros jornalões, TVs e rádios da grande mídia. O que interessa é que o jornal, naquele momento, podia estar evoluindo ou mesmo acordando do pesadelo que havia se abatido por longos 20 anos sobre o Brasil.
De uns cinco anos para cá, no entanto, a Folha dá uma reviravolta violenta. Mais precisamente, depois do recolhimento de seu proprietário e publisher (dono e editor), como o próprio jornal, americanamente, o intitulava, Otávio Frias, afinal falecido em 29/04/2007, a Folha vem exibindo um certo mal-humor e intransigência, no mínimo surpreendentes. Nem outros veículos pesadões e conservadores, como O Globo e o Estado de S. Paulo, The New York Times, Herald Tribune, Le Monde ou The Times (londrino) conseguem ser tão intolerantes.
No seu noticiário, ela se refere, por exemplo, a Fidel Castro como “ex-ditador”. Aqui revela inclusive uma desinformação. Fidel, como 1o. Secretário e Comandante-em-Chefe, continua a dar as cartas, a partir de seu leito de enfermo, em Cuba. Raul Castro, o irmão e companheiro de revolução, é apenas o presidente da República, que, no regime cubano, não é necessariamente a principal autoridade do país.
Já o general Hosni Mubarak, que governa, discricionariamente, o Egito há 27 anos, é tratado como “presidente” e “chefe de estado”. Por que também não chamá-lo de ditador? Por ser ele um governante títere a serviço de Washington? O jornal pode alegar que Mubarak é eleito, em eleições fraudulentas de que todo o mundo é conhecedor. Ao que se pode responder que Fidel Castro é também eleito pelo voto popular, em pleitos regulares a cada quatro anos.
Não bastasse esse tropeço, a Folha procurou recentemente atenuar os crimes e os estragos do regime de 1964, ao caracterizá-lo, não como uma ditadura, mas como uma “ditabranda”. Dois intelectuais do mais alto respeito, inclusive da própria Folha durante sua fase progressista, como os professores Fábio Konder Comparato e Maria Vitória Benevides, fizeram veemente protesto contra aquele editorial, na seção de carta dos leitores. Uma reação violenta e desproporcional da nova Folha, não se fez esperar: “Quanto aos professores Comparato e Benevides, figuras públicas que até hoje não expressaram repúdio a ditaduras de esquerda, como aquela ainda vigente em Cuba, sua “indignação” é obviamente cínica e mentirosa”.
Foi o bastante para que as mais diferentes correntes de opinião expressassem o seu protesto, em manifestações de rua e num manifesto de intelectuais, à frente Oscar Niemeyer, Goffredo da Silva Teles, Delmo Dallari:
“…A direção editorial do jornal insulta e avilta a memória dos muitos brasileiros e brasileiras que lutaram pela redemocratização do país. (…) O estelionato semântico manifesto pelo neologismo ditabranda é, a rigor, uma fraudulenta revisão histórica forjada por uma minoria que se beneficiou da suspensão das liberdades e direitos democráticos no pós-1964”.
Pouco depois, em outro surto reacionário, a Folha de S. Paulo investe contra a ministra da Casa Civil e pré-candidata a presidente, Dilma Roussef, divulgando com estardalhaço uma suposta ficha do Dops (orgão de repressão da ditadura), em que ela é acusada de terrorismo.
A ministra foi em cima do jornal e agora quer satisfação. Numa entrevista à revista Carta Capital desta semana, no. 546, Dilma exigiu: “É uma epísódio lamentável. Primeiro pelo fato de colocarem em primeira página… sem ter certeza da autenticidade. Se partem do princípio de que a autenticidade é uma questão menor, fica complicado para o leitor saber o que pode acreditar das diferentes notícias que o jornal publica”.
Dilma disse que, no calor dos acontecimentos, comportou-se de forma tranquila, mas hoje “acha estarrecedor a atitude da Folha, o silêncio da Folha. Para mim, é absolutamente injustificado. Mas se alguém supõe que a ditadura foi branda pode também não achar grave publicar uma ficha falsa”.
Até onde pode ir essa recidiva golpista do famoso jornal é uma questão que ainda paira no ar. O problema é identificar as razões que o levaram ao despropósito. Terá sido alguma pressão dos novos sócios estrangeiros, a que foi obrigado a recorrer depois do fracasso na aventura dos negócios fáceis propiciados pela política de privatizações da era FHC. Tudo faz crer que não se trata de uma atitude ideológica ou intelectual, porque, historicamente, a Folha sempre colocou a opção capitalista em primeiro lugar.