Ensaio de Geniberto Paiva Campos
“Não é sem sangue, sem sofrimento e sem sacrifício que se constrói uma grande nação”.
(Da seção de cartas de O Estado de São Paulo, julho de 1924) (1)
“A revolta é o último dos direitos a que deve recorrer um povo livre para salvaguardar os interesses coletivos, mas é também o mais imperioso dos deveres impostos aos verdadeiros cidadãos”.
(Juarez Távora) (1)
1. E assim começou o Tenentismo, um dos mais importantes e duradouros ciclos da história política contemporânea brasileira. Heroísmo, coragem, desprendimento, dedicação à Pátria. Disposição para o sacrifício. Se necessário, morrer nobremente pela causa patriótica.
Caracterizado pelo intervencionismo, o outro nome para revolta. Um recurso sempre disponível ao qual muitas vezes se recorria para salvar a Nação.
Durante pelo menos seis décadas, o tenentismo sobreviveu e mostrou, a cada momento, a sua nobre e heroica face aos brasileiros. E esta face assumia as mais diferentes características.
O ciclo tem o seu início de lutas heroicas e marcantes em 1922, com a “Revolta do Forte de Copacabana”. Que passou à história como “Os 18 do Forte”. Na qual os nomes de jovens e corajosos tenentes – são bem lembrados Siqueira Campos, Juarez Távora e Eduardo Gomes – comprovaram a sua coragem pessoal e seu heroísmo, entrando, definitivamente, para a nossa História.
Em sequência, irrompe em São Paulo, em 1924, agregando vários atores da revolta anterior, o movimento que ficou caracterizado como a “Coluna Prestes”. Por aproximadamente 3 anos a Coluna percorreu o Brasil, cobrindo quase todas as suas regiões. Numa marcha de sacrifício que terminou no estado de Mato Grosso, quando os revoltosos sobreviventes se exilaram na Bolívia. Deixando ali alguns companheiros mortos, sepultados no cemitério de “La Gaiba”, em território boliviano. (Em saudação aos mortos, tombados na Coluna, o revolucionário Moreira Lima, diante de Luis Carlos Prestes, pronuncia uma espécie de sentença que pretendia profética, definitiva: “Tiranos! Os vossos dias estão contados na terra brasileira! ” (1)
Finalmente, em 1930 os tenentes assumiram o poder, no movimento que ficou conhecido como a “Revolução de Trinta”. Na qual teve início uma tumultuada sequência de intervenções “salvacionistas”.
2.A partir daí o ciclo tenentista vai assumindo novas características históricas e políticas. Mas deixando sua marca indelével: a revolta como recurso necessário – legitimado pela história – para resolver situações de crise e repor a ordem. Combatendo os “Carcomidos” (os corruptos e incompetentes da época). Sempre em busca do progresso, agora com o nome de desenvolvimento.
Resumindo, os períodos especiais inseridos no século vinte, configuram dois ciclos autoritários, regidos pela influência da ideologia tenentista: o início da Era Vargas (1930/1945) e a Revolução/Golpe de 64 (1964/1985). Com o intervalo democrático de dezenove anos (1945/64), quando, mesmo com o registro de algumas turbulências, foram realizadas eleições livres e diretas, vitoriosos nas urnas os governos Eurico Gaspar Dutra, Getúlio Vargas, JK, Jânio Quadros e João Goulart. Este seguido pelo ciclo autoritário dos generais presidentes: Castelo Branco, Costa e Silva, Garrastazu Médici, Ernesto Geisel, João Figueiredo. E, finalmente, o retorno à Democracia e às normas constitucionais, vigentes desde 1985 até os dias atuais. (Eis um breve – e sumaríssimo – resumo da evolução política contemporânea brasileira).
É possível que o heroico ciclo intervencionista dos tenentes tenha chegado ao fim, após quase um século de permanência entranhado na vida política da nação brasileira. Mas caberiam, no entanto, algumas perguntas singelas: o país adentrou em definitivo na vida democrática plena, ou estariam surgindo novos heróis salvadores da pátria? Qual, enfim, o legado do Tenentismo?
Analisando o legado tenentista: neste longo ciclo dos “tenentes”, iniciado na década de 1920, o país e o mundo passaram por inúmeras transformações. E o Brasil chegou ao século 21 com várias das suas estruturas e instituições renovadas. Com inegáveis contribuições dos longos ciclos autoritários e dos relativamente curtos períodos democráticos. Estes, somados, perfazem um total de menos de cinquenta anos de governos democráticos, no período de aproximadamente um século. Livres da tutela salvacionista (e intervencionista e autoritária) dos incansáveis heróis da pátria.
Difícil ou mesmo impossível avaliar aonde poderíamos ter chegado com governos e instituições vivenciando a calma e a plenitude democráticas. Mas seria justo inserir algumas questões (irrespondíveis?) relacionadas a esse peculiar processo histórico: a quebra repetida da ordem democrática era mesmo necessária para garantir um futuro melhor para o país? O nobre sacrifício dos heróis da pátria conseguiu demonstrar, historicamente, que este sacrifício era mesmo essencial ao nosso desenvolvimento e à construção de uma sociedade civilizada?
São questões aparentemente inócuas. Mas ainda que respondidas com natural viés político – ideológico, poderiam servir, pelo menos, para orientar o nosso porvir, com ou sem Democracia.
(Talvez possa ficar, como sugestão, buscar colher respostas futuras através de escrutínios e consultas populares, em plebiscitos e/ou referendos. Para falar em nome do povo, torna-se essencial ouvi-lo).
Mirando, portanto, o futuro imaginamos que para atingir um definitivo e estável processo civilizatório seria indispensável chegar-se a um consenso, precedido de bem articulada e inteligente “concertacion”, (acordo) onde os fatos pretéritos passariam a constituir verdadeiramente o passado, perene fonte de aprendizado. Dando início à tessitura de um necessário projeto de reconciliação do país, o qual poderia ter sido iniciado há algumas décadas. Seria sonhar muito alto? Nem tanto. Mas onde os estadistas – ou, que seja, políticos e cidadãos com visão histórica e estratégica – dispostos a fazê-lo? Homens e mulheres que saberiam contar o tempo em décadas, não apenas em dias, ou minutos.
E o povo? O povo está aí. Como sempre esteve. Para ser ouvido e consultado, como de obrigação e de direito, em todas as democracias.
3. Millôr Fernandes (1923-2012), um irreverente jornalista e pensador brasileiro, dizia com o seu humor cáustico: “herói é aquele não conseguiu fugir”. (2)
Bertolt Brecht (1898- 1956), cultuado dramaturgo alemão, produziu uma das suas frases mais polêmicas e instigantes: “pobre do país que precisa de heróis”. (2)o, o Brasil (e a América Latina) tornou-se uma espécie de laboratório de experiências políticas, onde os heróis consagrados e eventuais candidatos ao posto desfilavam seu inconformismo com a situação do país. E arrostando elevados riscos e sacrifícios, empunhavam suas armas e partiam para fazer as revoluções transformadoras, mesmo sem o apoio prévio do povo ou, vá lá, das “massas oprimidas”. Derrubando autoridades constituídas e implantando, pela força, um novo projeto de país. No claro e altruísta propósito de criar um novo regime, inventar um novo país.
Curiosamente, este método de mudanças institucionais pelo uso da força e abstraindo o voto, consultas à cidadania e abstraindo as manifestações populares, tornou-se uma espécie de loucura – ou aventura – consentida, e até admirada por muitos. Que sempre imaginaram o Brasil carente de heróis, de luta e de sangue derramado. Pois, na visão deles, não se constrói uma pátria sem tais ingredientes. Vejam-se os exemplos pelo mundo. E entre nós brasileiros, a opinião expressa por um leitor do jornal “O Estado de São Paulo” – citado na epígrafe deste artigo – no ano longínquo de 1924, que falou e disse: “ Não é sem sangue, sem sofrimento e sem sacrifício que se constrói uma grande nação”.
Seria este, em resumo, o fundamento da ideologia tenentista do século passado. E onde estão os tenentes, heroicos salvadores da pátria brasileira? Gozam do merecido repouso dos guerreiros. E deram lugar aos “novos tenentes”. Heróis sem nenhum heroísmo.
Eles agora vestem toga e expressam a sua confusa revolta atropelando a Lei e o Estado de Direito. Tudo em nome da salvação do país. Fazem as suas “marchas” pelos novos campos de batalha: os tribunais da alta e média hierarquia jurídica, correndo mínimos (ou nulos) riscos pessoais. Sem necessidade do uso de armas ou montarias. Falam o que bem entendem. (“Fazem a diferença”). Condenam sem provas em processos criminais. E as suas armas são agora de outra natureza. Mas igualmente mortais e certeiras. Não fazem jorrar sangue. Mas produzem sofrimentos e sacrifícios incalculáveis. E comprometem gravemente a Democracia. Utilizando, impunemente, às vezes de forma pusilânime, o projétil mortal da Injustiça.
Pobre do país que (ainda) precisa de heróis.
Até quando aceitaremos viver na instabilidade, na insegurança jurídica e na permanente ameaça à Democracia?
Como diz o verso da belíssima canção do Bob Dylan:
“ a resposta está soprando no vento”…
REFERÊNCIAS
1. “As Noites das Grandes Fogueiras” – uma história da Coluna Prestes – Meirelles, Domingos – Ed. Record – 2013.
2. Citações feitas de memória, pelo autor.
3. Bob Dylan – “Blowin’g in the wind” – 1963