Por Helena Iono
(De Buenos Aires) O retorno de Cristina Kirchner no cenário político foi aguardado com grande expectativa da militância que representa a maioria dos trabalhadores, dos novos pobres e desempregados, da classe média rebaixada, dos intelectuais, artistas e, sobretudo, da juventude da Argentina, que nela depositam a esperança da retomada da sua liderança à cabeça do chamado projeto nacional e popular, hoje vitimado por golpes e regressões nos 6 meses do governo de “Cambiemos” do atual presidente Macri.
No último sábado, Cristina, após chegar a Buenos Aires, recepcionada por uma enorme multidão a altas horas da noite, sob frio e chuva implacável, concede no dia seguinte, uma entrevista ao programa de Roberto Navarro, Economia e Política, de maior audiência nacional, do Canal C5N (http://www.agenciapacourondo.com.ar/politica/19894-hubo-un-ajuste-brutal) Na realidade, ela nunca esteve ausente, naquela Patagônia rebelde.
Muito pelo contrário, continuou participando do debate interno das filas da FPV, do peronismo e dos movimentos sociais, de várias formas, inclusive emitindo opiniões por twitter, mensagens e cartas políticas. E tudo sob o bombardeio do chamado “Partido Judicial” e midiático, que tem tomado uma dimensão abusiva dentro do já crescente sistema repressivo e ditatorial.
Vem de cheio – Tal ação chega a ponto da polícia ameaçar invadir sua residência em Rio Gallegos, nos mesmos moldes da tentativa de prisão coercitiva que os algozes de Moro e a PF tentaram com Lula, no Brasil. Mas, assim como o Instituto Lula, Cristina criou, há meses, o “Instituto Pátria”, contando com o apoio de uma equipe de ex-dirigentes e apoiadores do seu governo; e tudo indica que veio de cheio, com determinação para dar maior vida ao que promete ser um centro de debate, formação política, articulações e resistência.
Nos mesmos moldes que no Brasil em relação às gestões do Lula/Dilma e do PT, o ataque às conquistas sociais da era kirchnerista consiste em levantar a falsa bandeira do ataque à “corrupção” da chamada “herança” da década passada, difamando Nestor, Cristina e seus familiares. A manobra atinge, igualmente, membros do ex-governo da FPV, como Aníbal Fernandez (ex-chefe da Casa Civil) e Julio De Vido (ex-ministro da Planejamento), colocando-os de forma caricata e macabra, num mesmo saco de casos de desvios. Querem assemelhá-los a José Lopez, cuja integridade tornou-se indefensável, diante do chocante show midiático ao qual ele mesmo parece servir.
A enxurrada de falsas acusações contra Cristina, seja do “dólar futuro” (já explicamos em artigo anterior), ou do Hotel Sur e propriedades de família (explicadas por Cristina na sua entrevista http://www.agenciapacourondo.com.ar/politica/19894-hubo-un-ajuste-brutal ) nada mais é que uma guerra suja e perversa de desmoralização de sua liderança, para justificar, na prática, o desmonte, com decretos emergenciais, do projeto kirchnerista de independência nacional e inclusão social, de recuperação dos direitos humanos mais importante realizado depois de Perón desde 2003.
O ataque centrado contra Cristina Kirchner, que retorna decidida a enfrentar todos os processos no Comodoro Py (Tribunal da Justiça), tem também um outro objetivo, denunciado por Jorge Capitanich (de Entre Rios, e ex-chefe de gabinete presidencial): é impedir qualquer papel político da ex-presidenta. Não esqueçamos inclusive da proximidade das eleições legislativas em 2017.
Desta vez, Cristina reentrou disposta a notificar-se perante o Tribunal, para defender-se; inclusive saindo para o ataque, apelou judicialmente contra a deputada de Cambiemos, Margarita Stolbilzer, e o juiz Claudio Bonadio por falsa acusação, baseados em tráfico e manipulação de informação; e prometeu fazê-lo em todos os casos subsequentes causantes de danos morais.
Chegaram ao absurdo de bloqueio ilegal de bens pessoais e contas da ex-presidenta, sem julgamento. Seus advogados admitem que querem conduzi-la à prisão. Mas, tudo indica que Cristina não se intimida e dá indícios de que a sua reentrada em cena será para dar um salto nas articulações políticas dentro do peronismo e organizar as forças internas do kirchnerismo, estimular a unidade dos movimentos sociais e o empoderamento popular para resistir a este processo ameaçador à democracia na Argentina.
Cristina Kirchner, reaparece decidida não só a defender-se judicialmente dos ataques pessoais, mas a unir-se à sociedade empobrecida nestes 6 meses, sob ataque da barbárie neoliberal macrista. Macri gerou novos 167 mil desempregados onde a maioria é no setor privado; 5 milhões de novos pobres.
O tarifaço (aumentos dos boletos de luz, gás e água, que vão de 500 a 1.000%, em muitos casos impagáveis, equivalentes a 70% do salário) chegam a níveis de loucura. O incremento de mortos de frio e de gripe, por não poder pagar o gás e o aquecimento é real. Dessa forma, não se descarta uma rebeldia social, se não houver uma medida política do governo, revendo o tarifaço e o criminoso favorecimento do Ministro das Energias, Juan José Aramburem (ex-presidente da Shell), aos bolsos das empresas multinacionais de gás no Chile (Shell), e das Distribuidoras privadas de Eletricidade, aprofundando o colapso das camadas pobres e da classe média baixa, rumo à indigência.
Hoje, o Ministro da Justiça, Germán Garavano, adverte que é preciso um parecer da Corte Suprema da Justiça frente às medidas do tarifço. Há muitos apelos judiciais (“amparos”) frente aos quais os juízes locais de alguns municípios estão tendo que ordenar retroagir no valor dos boletos. O Ministério do Interior, Rogelio Frigério, diz que o limite do aumento não pode superar 400%. Mas, sequer essa é aplicada e controlada. É um caos! Não há diretivas oficiales, nem uma medida política do governo e o tarifazo continua arrasando.
Entre os consumidores afetados pelo tarifaço há muita confusão sobre como reagir frente a
critérios vagos sobre quem paga e quem não paga; boicotar o pagamento e sofrer o corte de energia em pleno inverno? Uma boa parte, sequer pensa em boicote, simplesmente não tem como pagar para não passar fome, e arriscam morrer de frio. Nas fileiras do bloco governista no Parlamento, a aliada Frente Renovadora, dirigida por Jorge Massa, começa a dissentir, fazendo-se porta-voz da pequena e média indústria em crise (muitas empresas, incluindo supermercados estão quebrando, pela alta das tarifas, redução do consumo interno, e consequentes demissões).
Cerca de 46% dos votantes de Cambiemos já qualificam o governo de muito ruim. Somente 20% da sua base eleitoral expressa satisfação (por posição de classe favorecida). O Ministro da Cultura da Cidade de Buenos Aires, Dario Lopérfido, acabou de renunciar; o mesmo que teve a ousadia de dizer que era mentira que havia 30 mil desparecidos da época da ditadura, provocando repúdio dos movimentos pelos direitos humanos, madres e avós de Praça de Maio, artistas e intelectuais.
Enfim, neste contexto, iniciou-se o “retorno” de Cristina, com uma proposta concreta de “auditoria das obras públicas decididas durante o seu governo”, que se levada a fundo, pode incriminar empresas e forças políticas ligadas ao atual bloque macrista, a nível das províncias ou cidades. Apelará por um processo judicial e parlamentar, aberto e público. Ao mesmo tempo fez um chamado a que a oposição parlamentar fosse mais efetiva, com ideia e menos embates moralistas, acusações diversionistas, que na realidade servem somente à direita, e não a pensar efetivamente nos problemas econômicos e na tragédia social diária dos trabalhadores. Um parlamento onde o tema central são acusações e defesas mútuas sobre o tema “corrupção” induz à chamada aversão à política, ao descrédito nas instituições democráticas, ao apartidarismo, ao fortalecimento do Partido Judicial e midiático, e ao fascismo. Talvez seja esse o sentido do apelo de Cristina, com um certo tom pacificador, contra o obstrucionismo que lhe fizeram sempre no Parlamento de maioria kirchnerista.
Durante o fim de semana do retorno de Cristina, sintomaticamente ocorreram episódios provocatórios de violência da direita. Um deles foi um assalto a uma paróquia na Ilha de Maciel que foi recentemente visitada por Cristina e sob direção do “Grupo de Padres que Optaram pelos Pobres”. Um episódio de intimidação às correntes católicas, como nossas igrejas eclesiais de base, apoiadas na Teologia da Liberação, da qual o Papa Francisco tem se aproximado. Um papa crítico aos opressores dos pobres, que não aceitou a doação suja de Macri e que acolheu no Vaticano a avó de Praça de Maio, Ebe Bonafine, não bendiz à estabilidade dos novos anfitriões do governo neo-liberal. O Papa argentino está semeando consciência e ressuscitando padres Mujicas nas favelas, como o 5 padres assassinados na ditadura há 40 anos no Massacre de San Patricio (1976).
Outro gravíssimo episódio violento acionado por grupos de direita, com a conivência da Polícia Federal foi o ataque na madrugada da 2a. Feira ao local do jornal El Tiempo Argentino e Rádio América. Trabalhadores, técnicos e jornalistas, organizados em autogestão, continuam há meses, mantendo o jornal, com uma linha independente, dando informação objetiva de interesse popular, após o abandono do proprietário, Martinez Roja , mandatário da gang que atacou destruindo o escritório e os equipamentos de ambos meios de comunicação, ferindo e agredindo. Cristina Kirchner, condenou o atentado à liberdade de expressão, típico dos piores momentos da ditadura, e visitou pessoalmente o local do jornal e da rádio para expressar sua solidariedade aos trabalhadores da cooperativa.
Enquanto isso, Macri, correndo pelo mundo em busca de mercados. Primeiro no Chile, declarando apoio à integração Mercosul com Aliança para o Pacífico, pretendendo recriar uma espécie de Alca, um livre comércio subalterno aos EUA, em oposição ao que já foi descartado no período de Nestor Kirchner que junto a Chávez e Lula mandaram a ALCA ao “carajo”, abrindo alas à Unasul, Mercosul, Celac e Brics, esses sim, instrumentos de integração e intercâmbio de produtos. Frente a uma Europa em crise, com uma Inglaterra que votou por Brexit, e uma Alemanha da Merkel incomodada, Macri saiu de mãos abanando.
Diante de um Brexit que reflete um mal estar da Inglaterra frente às imposições da UE, e de agricultores fartos de destruir sua produção, e suspeitosas “vacas loucas” por imposição dos chefes da UE, como esperar espaço no mercado europeu à exportação argentina? Pelo jeito sobrou pouco para as vacas argentinas, e uma incógnita para a tal da bioenergia do Macri. Este saiu do Chile praticamente afirmando o falimento do Mercosul, falando em “mais redes e menos paredes”. Depois foi à França e Alemanha tentar abrir portas de novo Mercosul do século XXI rumo à Europa. Tudo indica que encontrou “mais paredes e menos redes”. Tanto para Brexit, como para a América Latina, as opções válidas não podem descartar as relações comerciais como as estabelecidas nos últimos governos progressistas com a China e a Rússia. Não é à toa que o BRICs é um instrumento de integracão real de desenvolvimento, não virtual, nem só ideológico.