(Originalmente publicado em 17/02/2010)
Os sinais de alerta aumentam de intensidade – e de aflição. A crise econômica da Grécia, que ameaça levar de roldão o euro e todo um sonho de afirmação européia frente ao dólar, leva agora um dos papas da economia mundial, Daniel Cohen, a observar que “os europeus estão muito próximos das dificuldades argentinas durante o regime de convertibilidade, entre 1999 e 2001”.
Nós, brasileiros, aqui muito próximos da Argentina, talvez não lembramos muito bem do que aconteceu entre nossos hermanos naquele período. O país, até ali sempre louvado pelo FMI como o que mais se empenhava no “dever de casa”, entrou em default, ou seja moratória, porque não mais podia arcar com os serviços de pagamento da dívida. Foi o resultado de um programa de privatizações selvagens e de rigor fiscal que redundou no aumento do desemprego a quase 30%, da miséria em quase 50% e no confisco das contas bancárias da população. A população reagiu com o Cazarolazo, barulhentos distúrbios de rua, liderados pelas mulheres portando caçarolas, e a derrubada de cinco presidentes da República em um mês, entre dezembro de 2000 e janeiro de 2001.
O economista Cohen não citou, mas eu me lembro de outro estampido social de proporções parecidas, cuja origem está também vinculada à cartilha do FMI. Foi o Caracazo (alusão a Caracas), como se chamou a reação popular a um pacote do presidente Carlos Andrés Pérez que, a mando do FMI, ordenou um aumento de 100 por cento no preço da gasolina, 30% a 100% na passagem do ônibus, cortes drásticos no gasto público, liberação do câmbio, diminuição de salários, e um frenético programa de privatização. Os protestos populares não se fizeram esperar e cerca de duas mil pessoas foram mortas pela polícia. A partir dali, a população miserável chegou a 60%, o desemprego foi a quase 30% e a educação entrou em bancarrota. Três anos depois, o coronel paraquedista Hugo Chávez tentou sem sucesso um golpe de Estado para depor Andrés Pérez, num movimento apoiado pela população.
Será que o professor Daniel Cohen tem a exata dimensão do que está dizendo, quando estima que uma crise parecida pode ocorrer na opulenta Europa, por causa dos problemas econômicos da Grécia e de outros países pobres daquele continente? Não tenho muita certeza, mas o fato é que ele conhece bem a realidade latino-americana. Espanhol de origem, ele integra o time do prêmio nobel de economia 2009, Paul Krugman e do festejado Jeffrey Sachs, tendo participado, com outros chicago boys no choque anti-inflacionário, que conduziu a Bolívia a um colapso social e econômico, a partir de 1981, ele parece estar muito ciente do que fala. Tanto é que ainda raciocinou, numa entrevista que deu ao site do jornal conservador La Nación, de Buenos Aires:
“Ajudar à Grécia ou não? A União Europeia (UE) duvidou (e isto incentivou a especulação). A Alemanha se mostrou muito hostil à ideia de ajudá-la. Por sorte, tudo parece indicar que aprenderam a lição do Lehman Brothers (banco gigante americano que faliu, originando a crise mundial em 2008). A moeda única impõe uma solidariedade fiscal, ao menos em tempo de crise. Para mim, é o que vai ter de se fazer”.
A Grécia, como se sabe, integra o time de países pobres da Europa, formando com Portugal, Irlanda, Itália e Espanha, chamados pelos europeus ricos de PIGS (um acrônimo tirado das iniciais de Portugal, Ireland, Italy, Greece e Spain), que, na língua de Shakespeare, significa porcos. Sim, porcos. Não me pergunte a razão de tal desprezo devotado pela plutocracia europeia a seus súditos menos aquinhoados com a abastança.
Para agravar esses ressentimentos, os gregos enfrentam problemas dramáticos, também gerados pelos ataques especulativos, por sua vez causados pelas privatizações, empréstimos irresponsáveis e outras mazelas financeiras. Em consequência, provoca, há nove meses, a queda do euro, também sua moeda, junto com as de outros 15 dos 27 países que integram a União Européia. Na verdade, os problemas europeus, justiça se faça, não atingem só a Grécia, mas também seus companheiros de infortúnio, como Portugal e Espanha. Os espanhóis, por exemplo, estão com um índice de desemprego beirando os 20%, sendo que 44% entre os jovens, além de desajustes nas contas públicas e os danos casuados pela bolha imobiliária.
O problema começou a inquietar a cúpula da UE, que, dominada pela Alemanha, o país mais rico, exige que a nação diminua drasticamente seu déficit, de quase 13% em relação ao PIB. O governo socialista de Georges Papandreu ofereceu diminuir 4% ao longo deste ano, com uma série de medidas, que já foram rechaçadas pela população, em manifefstações de rua que inquietam Athenas desde o final de 2009.
Um pacote de medidas prevê cortes no orçamento, congelamento de salários, aumento de impostos, os quais, juntos com uma inflação alta, deixam o país sobressaltado. E os gregos formam uma população rebelde, conhecida historicamente por um sindicalismo forte, que já lhe proporcionou alguns avanços sociais. Não esqueçamos a propósito que eles, por motu próprio, quase alinharam seu país com o Bloco Soviético, quando este foi formado sobre os escombros da Segunda Guerra. Os aliados tiveram muito trabalho para reverter a situação, cuja gravidade não está muito longe da crise que agora padecem os descendentes de Platão e Aristóteles.