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A morte de Néstor Kirchner e o futuro da integração da América Latina

Por FC Leite Filho

Néstor e Cristina Kirchner, ambos advogados – ele, da gelada província de Santa Cruz, na Patagônia; ela, de uma família tradicional laplatense -, conheceram-se quando estudantes na Universidade de La Plata, perto de Buenoas Aires, em plena ditadura militar. Pertenciam à Juventude Peronista e eram tão peronistas que, na cerimônia do casamento, a marcha nupcial de Mendelssohn foi trocada pelo hino peronista. Eles jamais abandonariam o afeto pessoal e a paixão por Perón, o ídolo argentino do pós-guerrra que resgatou as grandes massas desprotegidas e ao mesmo tempo transformou seu país numa das nações mais viçosas e igualitárias das Américas e do Ocidente.
Juán Domingo Perón, como Getúlio Vargas, no Brasil, porém, jamais foi aceito pelo patriciado. Deposto num golpe sangrento, em 1955, depois de reeleito duas vezes presidente, purgou 18 anos de exílio. Voltou ao poder, em 1973, mas, doente e cansado, morreu, aos 74, um ano depois. Suas realizações, no entanto, fizeram dele uma mística tão incrustada na alma do povo, que seu partido, o Justicialista, misto de justiça e socialismo, passou a ganhar quase todas as eleições presidenciais, depois do fim da ditadura, em 1983.
Por aí se pode imaginar o grau da rejeição dos Kirchner por parte da elite econômica, sobretudo a mídia, hoje toda mobilizada para desestabilizar e, se possível, defenestrá-los da Casa Rosada. Em seu livro ‘Los Vendepatria – Historia de una traición”, o general Perón (um militar nacionalista) acusou especificamente o jornal “La Nación”, de, como porta-voz dos interesses ingleses (ainda imperiais na época), ter liderado a conspiração que, “em nome da democracia”, o apeou do governo, instaurando uma das ditaduras mais despóticas e obscurantistas do continente. “La Nación” subsiste até hoje, mas como segundo grupo de imprensa do país, secundando o “Clarín”, a atual potência midiática. Os dois comandam a conspiração aberta contra o governo constitucional da atual presidente Cristina Kirchner, mulher e sucessora de Néstor.

Ao contrário de Perón, os Kirchner (o primeiro a eleger-se presidente foi Néstor, em 2003, passando o bastão a Cristina, em dezembro de 2007), ainda que sem o talento e o descortino de Perón, revelaram incrível capacidade para afrontar e de certa maneira até derrotar o complô midiático e de instaurar um governo francamente popular e nacionalista. Eles tiraram o país da bancarrota de 2001, quando mais de 20 bilhões de dólares fugiram para o exterior, o desemprego subiu a mais de 20 por cento e a miséria absoluta a mais de 40%, projetando-o com níveis de crescimento e de ascensão social tão importantes quanto o Brasil e a Venezuela. Para contrabalançar os ataques da mídia privada, reforçou a TV Pública e criou um sistema de comunicação, que faz uso da TV Digital e mais especialmente da Internet, como o Twitter, sitewebs etc. Ainda anteontem, a presidenta Cristina Kirchner inaugurava o portal da Casa Rosada no Youtube, apresentando seus discursos e outros eventos marcantes.
Néstor, no entanto, descuidou da saúde, desconsiderando qualquer recomendação médica. Nas três crises graves que sofreu no último ano, saía direto do hospital para o tiroteio político, quando não para os comícios, como correu há cerca de um mês. Talvez pressentindo a morte, que lhe abateu esta manhã na residência El Calafate, situada na província natal e berço político de Néstor, Santa Cruz, o ex-presidente decidiu não disputar a reeleição, em 2007, e, num jeito muito argentino de fazer política, indicou Cristina, para sucedê-lo. Os dois ainda discutiam se Néstor se candidataria em 2007 ou se cederia novamente a vez à esposa, que tem direito a uma reeleição, quando nova crise cardíaca, desta vez fatal, o sacrificou no torrão quase antártico.
O fato é que a manobra garante de algum modo a continuidade de Cristina, que também revelou pendor para a administração e para a operação política. Seu maior desafio será levar avante não somente o governo do país, mas sim o esforço de integração continental, que empreende juntamente com Lula, no Brasil, Chávez, na Venezuela, e todos os outros presidentes progressistas, cuja política de soberania e defesa da região a livrou da crise mundial de 2008 e promoveu um dos maiores crescimentos sociais e ecnômicos da sua história.
Com a morte de Néstor Kirchner, que também era secretário-geral e principal executivo da Unasul – União das Nações Sul-Americans -, é possível que o cargo passe às mãos de Lula da Silva, caso sua candidata Dilma Rousseff, ganhe a eleição presidencial no Brasil, no próximo domingo, 31 de outubro. A designação de Lula para o cargo, que não será difícil, porque ele conta com apoio praticamente unânime dos 12 chefes de Estado, poderá significar que a política de integração latino-americana não sofra solução de continuidade e até se aprofunde, tal a tendência libertária de seus povos.

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