O jasmim é a flor nacional deste país paradisíaco para os europeus em férias. Por isso, foi apressadamente pinçado para caracterizar o movimento que defenestrou semana passada Zine El-Abidini Ben Ali do governo. General e agente de informação de 74 anos, Ben Ali repoltreava-se no cargo havia 23.
Digo “apressadamente” porque a sublevação tunisiana não tende a assemelhar-se às revoluções de cores ou flores, segundo a época ou a vegetação do país alvejado: Sérvia (2000), Geórgia (Revolução Laranja, 2003), Ucrânia (Revolução das Rosas,2004), ) e Quirguistão (Revolução das Tulipas, 2005). Pelo contrário, parece não ter sido orquestrada e assumir luz própria. As “revoluções” das cores, ao contrário, revelaram-se levantes arquitetados, técnica e mesmo cientificamente, pelos superpoderes, com o fim de subtrair aqueles países da órbita da ex-União Soviética ou de movimentos sociais e econômicos de autonomia, depois transferindo-os ao domínio dos Estados Unidos ou das potências européias (França, Alemanha, Inglaterra). O resultado foi que nada daquelas liberdades e avanços prometidos se efetivou e as populações continuaram tão carentes quanto antes.
Com efeito, a rebelião na Tunísia, deflagrada no apagar de 2010 pela imolação de um jovem desempregado (Mohamed Bouazizi, de 26 anos), não sugere nada da tutela ou estímulo das grandes potências, que também tentaram esses chamados golpes brandos para remover presidentes democraticamente eleitos, na Venezuela, em 2002 e 2003, na Bolívia, em 2009, e no Equador, 2010, tendo sido repelidos pelos respectivos governos e povo organizado.
É verdade que, em Túnis, o novo governo de transição, integrado pela quase totalidade do gabinete anterior e que pretende manter os mesmos laços de dependência, chegou a cooptar alguns setores rebeldes. Foi rechaçado pelos revolucionários, que exigiram (e foram atendidos) a demissão de quatro ministros correligionários designados para áreas pouco estratégicas. Ainda na rua, eles reivindicam a mudança total no governo e a convocação de uma assembléia constituinte.
Tudo indica que o movimento foi produto da reação do povo revoltado com um regime despótico, repressivo e corrupto, liderado por um militar simpático ou mesmo delegado dessas potências. Ben Ali, como se sabe, tinha cursado academias militares na França e Estados Unidos, antes de assessorar o presidente e herói da independência Habib Bourguiba, que depois traiu e destronou, em 1987.
Porque o governo Ben Ali era dócil, maleável e anti-islâmico, as potências fechavam os olhos para o descalabro e os abusos que praticava uma camarilha, na qual pontificava a amante do presidente, que tinha a chave do cofre e fazia a cobrança de impostos. Costumava-se dizer que Dona Leila Trabelsi, ex-camelô e cabeleleira, que conquistou o general, antes bem casado e pai de três filhas, cobrava sua taxa até no cafezinho. É a ela que se atribui o assalto final do ancien règime, quando conseguiu encaixar na bagagem da família em fuga para a Arábia Saudita uma tonelada de lingotes de ouro.
O fato mais desconcertante é que o regime de Ben Ali nunca foi tachado de ditadura ou proto-ditadura, epítetos com que a grande mídia, sempre fiel aos designos do poder econômico, costuma pespegar aos líderes da Venezuela, Bolívia e Argentina, onde não se registram abusos dos direitos humanos ou corrupção sistemática. Ben Ali, que era sempre chamado de “presidente” ou “chefe de estado”, aliás, está acompanhado de outros dignitários altamente corruptos e sanguinários, mas que, midiaticamente, são projetados como reis (caso da Arábia Saudita e Jordânia) ou presidentes (Egito, Argélia, Honduras etc.). Não se conhece tampouco sequer uma reportagem de relevo que denunciasse os abusos de poder, os desvios de fundos da família e dos amigos presidenciais para o exterior assim como os atentados permanentes aos direitos humanos, e que só agora vem à tona (ao contrário do que sucede em relação à Venezuela e à Argentina, por exemplo, onde uma cadeia de jornais e TVs mundiais despeja a cada dia uma torrente de reportagens denegrindo suas autoridades).
Para ilustrar a força desses golpes brandos, cuja última investida bem sucedida foi a quartelada em Hondura, em 2009, a advogada e ativista venezuelano-americana Eva Gollinger, uma expert no assunto, chamou a atenção para um cabograma do Wikileaks enviado pela Sessão de Negócios, que faz as vezes da embaixada americana, em Cuba.
Segundo o documentário, “a missão estadunidene organizou uma reunião com “jovens opositores” de toda Cuba para mostrar-lhes um filme documentário sobre a derrubada de Slodoban Milosevi na Iugoslávia (agora Sérvia), em 2000, com a intenção de facilitar um movimento similar contra o governo cubano”.
O documentário, “Derrubando um ditador”, foi elaborado por uma produtora americana estreitamente vinculada ao Pentágono, à CIA e ao Departamento de Estado. A peça mostra como um grupo de jovens, financiados e treinados pelas agências de Washington e outros organismos internacionais , como o Instituto de Sociedade Aberta, do bilionário húngaro George Soros, conseguiram derrocar o então chefe de estado da Iugolsávia, através de uma estratégia de “golpe brando”. Os jovens foram agrupados numa organização chamada OTPOR (Resistência) que, seguindo diretrizes e instruções de várias agências e institutos estadunidenses, como o Instituto Albert Eionstein, de Gene Sharp, o Centro Internacional para o Conflito Não-Violento (ICNC), de Peter Ackermann e Jack Duvall, a Freedom House, a USAID, a NED (este do Congresso) e o Instituto Republicano Internacional (IRI) executaram uma série de ações e mobilizações de rua para promover um estado de desestabilização permanente e provocar a “repressão” do estado”.
Revela ainda Eva Gollinger que pela estratégia do golpe brando, os jovens, sob a bandeira da não-violência e empregando logotipos e táticas de marketing que atraem a juventude, fomentam pequenos distúrbios nas ruas para criar um clima de permanente instabilidade e caos. Depois, atraindo a atenção da mídia internacional, os jovens guidados pelas agências de Washington, provocam a repressão do estado (através de atos violentos ou ilegais), que em seguida é projetada através da imprensa como uma violação dos direitos humanos e utilizada para justificar qualquer ação contra o governo”.
Vê-se a que ponto chega a manipulação da opinião pública e, principalmente, a utilização da energia e idealismo da juventude, para servir aos interesses mais mesquinhos das políticas de dominação, e a que estão expostas as populações dos países, por mais avançado que seja seu estágio de desenvolvimento. A reação da Tunísia, a qual, como os exemplos daqueles nossos vizinhos latino-americanos, pelo menos até agora, vem mostrar que nem tudo está perdido e que as ideias libertárias ainda podem vingar.
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