domingo, novembro 24, 2024
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Crítica do filme Homens e Deuses


Prêmio do Júri do Festival de Cannes do ano passado, Homens e Deuses, de Xavier Beauvois, reconstitui, em termos de ficção, os angustiantes momentos vividos por nove monges trapistas, que se mantiveram isolados no mosteiro Atlas, em Tibhirine, perto de Médéa, na Argélia, antes de serem sete deles assassinados em circunstâncias não totalmente esclarecidas, em março de 1996, durante a guerra civil.

O roteiro de Etienne Comar – também produtor do filme -, adaptado por Beauvois ao seu estilo de narrativa, não só procura mostrar como os monges, tidos hoje nos meios católicos africanos como mártires, se integraram à vida da comunidade local – prestando aos nativos assistência educacional, agrícola, médica e participando de suas solenidades islâmicas –, como suscita mais dúvidas sobre o final trágico a que, pelo que se presume, teriam , espontaneamente, se submetido.

A dramaturgia de Beauvois, que não se interessa por religião, mas pelo homem – os cantos gregorianos e cistercienses funcionam na película como o coro na tragédia grega -, é propositalmente ambígua numa série de situações que expõe. Deixa, por exemplo, a impressão de que, diante do caos, os monges teriam agido na cegueira, isto é, negando a existência ante o fascínio da morte. Por que sabendo eles que os mercadores croatas estavam sendo degolados pelo Grupo Islâmico Armado – GIA -, na vila bem próxima ao mosteiro, apesar de instados pelo governo, recusaram a ajuda do exército para retornar à França.

A propósito, a película se inicia pela citação do Salmo 82: 6-7: Eu declarei: Vós sois deuses, todos vós sois filhos do Altíssimo; contudo, morrereis como um homem qualquer, caireis como qualquer dos príncipes. Numa das cenas mais elucidativas nesse sentido, o irmão Luc (Michael Lonsdale), médico, que havia atendido a um terrorista ferido, gerando revolta na comunidade, emite seu conceito de liberdade, inerente, a seu ver, à morte. Assim, depois de declarar ao irmão Christian (Lambert Wilson), líder da congregação, que está preparado para morrer, ao ser consultado sobre a opção de ficar ou de partir, ele afirma, com um sorriso malicioso: Agora, deixe passar um homem livre!…

É na sequência da última ceia – a mais bela do filme, pontuada pela abertura do Lago dos Cisnes, de Tchaikovsky – que fica evidente, por assim dizer, a sagração da ideia da morte (para não sugerir a do suicídio coletivo), quando os monges erguem suas taças de vinho num brinde que já antecipa a chegada dos terroristas ao mosteiro, seus (benvindos) algozes. Numa demonstração de comunhão espiritual, os religiosos sorriem uns para com os outros e se abraçam como se expressassem a superação de seus problemas existenciais, alguns dos quais expostos ao irmão Christian, que tem para com todos um cuidado paternal.

A temática da aceitação da morte fora anteriormente abordada por Xavier Beauvois na película Não Esqueça Que Você Vai Morrer (1995), Prêmio do Júri da Mostra Um Certo Olhar do Festival de Cannes, que conta a história de um aidético em sua última viagem à Itália. Para narrar a decisão dos nove monges de Tibhirine de esperar passivamente pela morte premeditada – ou de desistir de rolar a pedra de Sísifo, como diria o argelino Albert Camus -, Beauvois usa, nessa que é a sua quinta película, uma linguagem sóbria, despojada, lírica, em que cada plano ganha um significado próprio, quase independente. Com maestria, ele também registra, por meio de travellings bem planejados, as atividades agrícolas dos monges com a gente da comunidade. A mise-en-scène é rica em detalhes, principalmente no que diz respeito à liturgia dos cantos, como os de Natal. Observe-se, contudo, que não há a celebração do ritual da missa. Um dos monges toca o sino, mas nenhum fiel comparece para assistir ao ofício religioso anunciado.
A ambientação de Michel Barthélémy é fixada num velho mosteiro desativado há muitos anos em Azrou, Marrocos, numa região que não é tão agreste quanto a da Argélia, mas que propicia autenticidade às cenas, principalmente às externas captadas pela bela fotografia de Caroline Champetier. Mas são, sem dúvida, as interpretações dos nove atores, nos papéis dos monges trapistas, que dão ao filme a categoria que tem, merecedor de inúmeros prêmios europeus. O rigor que se nota em todos eles na composição de suas respectivas personagens os qualifica como verdadeiros criadores artísticos. Lambert Wilson, como Christian, nunca esteve tão inspirado, explorando o porte físico, a voz e a dicção. Michael Lonsdale transmite sob impecável forma artística a alma que ele soube criar para o fatigado irmão Luc, e Jacques Herlin expressa, pela vivacidade do olhar, a inquietação de Amédée.
REYNALDO DOMINGOS FERREIRA
ROTEIRO, Brasília, Revista
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FICHA TÉCNICA
HOMENS E DEUSES
DES HOMMES ET DES DIEUX
França / 2010
Duração – 120 minutos
Direção – Xavier Beauvoix
Roteiro – Etienne Comar e Xavier Beauvoir
Produção – Pascal Caucheteux, Etienne Comar
Fotografia – Caroline Champetier
Edição – Marie-Julie Maille
Elenco – Lambert Wilson (Christian), Michael Londale (Luc), Olivier Rabourdin (Christophe), Philippe Laudenbach (Célestin), Jacques Herlin (Amédée), Loïc Pichon (Jean-Pierre), Xavier Maly (Michel), Sabrina Ouazani (Rabbia), Olivier Perrier (Bruno), Farid Larbi (Ali Fayattia), Adel Bencherif (Terrorista).

leitefo
leitefo
Francisco das Chagas Leite Filho, repórter e analista político, nasceu em Sobral – Ceará, em 1947. Lá fez seus primeiros estudos e começou no jornalismo, através do rádio, aos 14 anos.
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