sexta-feira, novembro 22, 2024
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As gravações de Jacqueline e a corte dos Kennedy

Por FC Leite Filho
As gravações de Jacqueline Bouvier Kennedy, recentemente divulgadas, revelam muito do glammour mas também da futilidade e arrogância da chamada era Kennedy. Alçado à presidência dos Estados Unidos, aos 44 anos, como um rosto jovem e sorridente que iria mudar ou ao menos suavizar a carranca da superpotência, em pleno expansionismo, John Fitzgerald Kennedy, marido de Jacqueline, ou Jackie, para os íntimos, foi assassinato quando terminava seu terceiro ano no cargo (1963). Os tiros do transtornado Lee Harvard Oswald, que o atingiram num automóvel aberto nas ruas de Dallas, Texas, ao lado da bela mulher, fizeram de John o herói que até hoje, passados 47 anos, é pranteado mundo afora.


Não obstante, a gestão Kennedy envolveu-se em episódios nada dignificantes. Foi responsável, por exemplo pela guerra do Vietnã, uma das maiores atrocidades do século (1962), a invasão de Cuba, pela Baía dos Porcos, em 1961; e a ordem para a armação do golpe militar que depôs o presidente constitucional do Brasil, Joâo Goulart, em 1964, iniciando a longa noite das ditaduras militares sobre quase toda a América Latina.

É justamente a João Goulart que a voz de Jacqueline (falecida em 1994), na extroversão de seus 31 anos de idade, chama de “dissimulado e ladrão”. Fazendo um depoimento para a história, ao longo de oito horas e meia de entrevistas gravadas a Arthur Schlesinger Junior, um dos maiores historiadores de seu país, também assessor do presidente e amigo da família, Jacqueline foi até autêntica ao avisar que as suas afirmações refletem o pensamento do marido: “Eu pego todas as minhas opiniões do meu marido. De que outra forma eu poderia ter qualquer outra opinião política”.
Preconceituosa, Jackie ainda destilaria seus venenos emoutros líderes mundiais. Sobre Indhira Gandhi, primeira ministra da Índia e uma das lideranças dos países não alinhados, ou seja, não dependentes (dos EUA), ela sentenciou: “Amarga, meio insistente. Eu simplesmente não gosto dela. Parece que está sempre chupando um limão”. De Martin Luther King, o grande líder negro de seu país, disse: “um impostor, estava bêbedo (no funeral de John) e planejou uma orgia para depois da Marcha para Washington”. Um lembrete: foi nesta marcha que King cunhou a frase, hoje símbolo do movimento negro em todo o mundo: “Eu tenho um sonho”. Sobre Franklin Delano Roosevelt: “Fez coisas horrorosas, só para causar impacto”.
Voltando ao nosso presidente deposto, Jacqueline Kennedy pergunta: “Goulart estava realmente bagunçando, não estava? Na economia e com os comunistas… Acho que ele (John) o considerava dissimulado e ladrão”.

O importante a assinalar é que Jackie não estava brincando nem ironizando. Ela reflete posições solidamente centradas na administração norte-americana, na ocasião, comandada pelos Kennedy. John havia nomeado um irmão, Robert, também assassinado na flor da idade (1968) por outro maníaco, nomeado ministro da Justiça e articulador político, enquanto outro irmão, Edward, era deputado por Massachussets, a terra da família. As recriminações da ex-primeira dama (as gravações foram feitas quatro meses depois da morte de Kennedy), na verdade, já tinham sido registradas pelo mesmo Arthur Schlesinger no livro “Robert Kennedy and his times (Robert Kennedy e sua época)’, publicado em 1978 pela Ballantine Books (sem tradução em português), quando o historiador conta a vinda de Robert Kennnedy ao Brasil, em janeiro de 1963, para pressionar João Goulart contra “a penetração comunista” no governo brasileiro.

“Ele começou a conversa com Goulart”, relata Schlesinger, nesse livro de 1.164 páginas, “observando que um novo ministério deveria ser formado, com um novo programa”. Para Robert, tais medidas poderiam significar um grande avanço na relação do Brasil com os Estados Unidos e com toda América Latina, como um todo”. Mas “os últimos acontecimetnos ” vinham levantando “as dúvidas mais graves”. Era difícil visualizar uma colaboração se o Brasil não demonstrava “nenhum espírito de participação ativa ou de liderança na Aiança para o Progresso (programa de ajuda de Kennedy para a América Latina, que quase não saiu do papel), se o governo brasileiro e os sindicatos eram sistematica e decididamente anti-americanos”.
Goulart, que tinha um temperamento conciliador, respondeu que os Estados Unidos tinham de entender “a disputa das classes populares contra as velhas elites dominantes” e ponderou que esses problemas seriam minimizados depois que o governo recuperasse, através de um plebiscito, os poderes que tinha perdido para o parlamentarismo, regime instalado como condição para que Jango assumisse a presidência da República, na crise da renúncia de Jânio Quadros, em 1961.

Robert Kennedy não gostou da resposta e escreveu um bilhete ao embaixador americano no Brasil, Lincoln Gordon, que estava presente na conversa, realizada no Palácio do Planalto: “Não estamos chegando a lugar nenhum”. “Quando Robert retomou a palavra, depois de mais de uma hora (ouvindo Goulart)”, continua o historiador, “perguntou se o presidente realmente entendia a preocupação do presidente Kennedy. Os Kennedy afinal tinham seus próprios problemas com as multinacionais americanas. O Brizola (que, como governador do Rio Grande do sul, tinha encampado duas empresas americanas) não causava mais problemas do que Barry Goldwater (líder extremista dos republicanos). Mas a política para provar a independência do Brasil hostilizando sistematicamente os Estados Unidos não pode se conciliar com uma boa relação brasileiro-americana”.
“Goulart quis então saber o que Robert Kennedy estava querendo dizer. Lincoln Gordon apontou alguns órgãos governamentais onde ele acreditava estar havendo uma série penetração esquerdista. Houve um momento de tensão mas depois a reunião terminou emclima agradável”, conclui Arthur Schlesinger”. Passados 48 anos desta conversa de Jango com Bob Kennedy e 47 das entrevistas de Jackie, ambas testemunhadas por Arthur Shlesinger, Jr., a propenção estadunidense em querer controlar seus vizinhos não parece ter mudado muito, como prova o estardalhaço provocado pelas confissões da ex-primeira dama. A capacidade dessses países em repeli-las é que mudou substancialmente, como atestam os últimos acontecimentos e eleições na velha Latinamerica.

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Francisco das Chagas Leite Filho, repórter e analista político, nasceu em Sobral – Ceará, em 1947. Lá fez seus primeiros estudos e começou no jornalismo, através do rádio, aos 14 anos.
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