(Publicado originalmente em Dom, 31 de Maio de 2009 17:46)
Por Reynaldo Domingos Ferreira
Com envolvente tratamento fílmico, o cinegrafista Walter Carvalho realiza sua primeira direção, em Budapeste, cujo tema, baseado no romance homônimo de Chico Buarque de Holanda, ressalta o encanto do verbo, da palavra, que propicia que os seres vivos de todos os pontos do Planeta dialoguem e se reconheçam, apesar das barreiras entre eles de ordem idiomática, semântica e cultural.
Na essência, o argumento – bem roteirizado por Rita Buzzar, também produtora da película – repete a abordagem do problema do duplo, muito explorado na literatura por Allan Poe, Dostoievski, Conan Doyle, Chesterton, Borges e outros. Dessa feita, o protagonista, José Costa (Leonardo Medeiros) é um ghost-writer (escritor anônimo), que se angustia por não ter vida própria.
Mas a respeito disso ele só vai se conscientizar ao acaso, quando, retornando de Istambul, na Turquia, onde participara de um Congresso de Escritores Anônimos, sob a ameaça de bomba a bordo, o avião em que viaja é forçado a fazer uma aterrissagem em Budapeste, a bela capital da Hungria.
Desde os primeiros momentos, Costa não só se encanta com a tonalidade amarela da luz que paira sobre a cidade no outono – magnificamente explorada na plasticidade da fotografia de Carvalho -, como também com a sonoridade da língua húngara, que lhe parece, porém, indecifrável.
Numa livraria, Costa conhece Kriska (Gabriella Hámori), que lhe assegura não ser possível aprender o seu idioma, o único que o diabo respeita, segundo afirma, somente pelos livros. Ela lhe propõe dar lições de húngaro, as quais acabam por também atingir a ambos emocionalmente. Por telefone, entretanto, ele deixa, na secretária eletrônica de sua mulher Vanda (Giovanna Antonelli), registrada uma mensagem em que expressa sua saudade de falar o português.
De volta ao Rio, Costa reencontra a mulher, âncora de um jornal televisivo, e o filho, gorducho, que se perturba à noite, ao ouvi-lo pronunciar insistentemente palavras em húngaro. Sem empolgação com o quê vê à sua volta, ele retoma a vida profissional e passa a escrever autobiografias. A que alcança maior sucesso O Ginógrafo – citação que o roteiro faz de O Livro de Cabeceira (1996), de Peter Greenaway -, é de um alemão, radicado no Rio, Karper Graber (Antonie Kamerling), a quem Vanda se entrega, maravilhada por sua obra.
Desgostoso com a vida familiar, Costa volta a Budapeste. Passa a viver com Kriska e absorve de tal forma seus ensinamentos, que, em pouco tempo, domina o idioma húngaro completamente. Tanto assim que, chamado entre os húngaros de Kósta Zsoze, ele chega a discutir com um deles (Oliver Simor), num bar, sobre a pronúncia exata de uma palavra, que assume sonoridade diversa entre os que vivem na capital e os do interior. E, orientado por Krista, começa a trabalhar como ghost writer, escrevendo até mesmo livros de poesia em húngaro. Mas, vencido o prazo de sua permanência no país, ele é deportado para o Brasil.
Para criar mais elementos visuais, a roteirista, além de fazer singrar pelas águas do Danúbio uma embarcação, levando a estátua quebrada de Lênin, construída para o filme ( lembrando, a propósito, uma cena de Adeus, Lênin (2003), de Wolfgang Becker, sobre a derrocada do regime soviético), cria a figuração de uma homenagem, um tanto canhestra, a meu ver, ao escritor anônimo por meio de uma efígie, erguida numa das praças de Budapeste, motivo de atração entre os turistas, que ouvem de um guia, falando em francês, a explicação – Enquanto outros países prestam homenagem ao soldado desconhecido, nós cultuamos aqui o escritor anônimo.
A direção de Walter Carvalho é criativa tanto na mise-en-scène, como na adequada composição de planos, explorando a questão da duplicidade de vida do protagonista. A angústia de Costa de se ter de partilhar entre duas realidades distantes, por exemplo, fica visualmente bem resolvida pelo uso do trânsito contínuo de bondes nas ruas da capital húngara, principalmente na sequência em que ele, na cabine telefônica, pronuncia palavras em português, como, entre outras, “adstringente”.
O que parece perfeitamente descartável, a meu ver, é a cena, em que, Carvalho, querendo repetir a marca registrada de Hitchcok em seus filmes, faz aparecer o autor do livro, Chico Buarque de Holanda, no aeroporto de Budapeste, ao final, pouco à vontade, pedindo, em húngaro, o autógrafo de Kósta Zsoze.
Á exceção de Giovanna Antonelli, o elenco internacional – com destaque para Gabriella Hámori, de grande experiência teatral, e para Paulo José, numa breve, mas brilhante atuação – responde corretamente à linha imposta pela direção de Carvalho. Leonardo Medeiros, embora não mude nunca a fisionomia, apresenta também uma interpretação bastante convincente. E, como não poderia deixar de ser, a trilha sonora de Leo Gandelman, de muito bom gosto e efeito, completa o espetáculo.
REYNALDO DOMINGOS FERREIRA
FICHA TÉCNICA
BUDAPESTE
Brasil/Portugal/Hungria/2009
Duração – 113 minutos
Direção – Walter Carvalho
Roteiro – Rita Buzzar, com base no livro Budapeste, de Chico Buarque de Holanda
Produção – Rita Buzzar
Fotografia – Lucas Carvalho
Trilha Sonora – Leo Gandelman
Edição – Pablo Ribeiro
Elenco – Leonardo Medeiros (José Costa), Gabriella Hámori (Kriska), Giovanna Antonelli (Vanda), Antoine Kamerling (Kaspar Graber), András Balint (poeta húngaro), Ivo Canelas (Álvaro), Oliver Simor (homem no bar), Paulo José (escrivão), Nicolau Brener (escritor francês).