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Crítica do filme "Dúvida"

(Publicado originalmente em Seg, 16 de Fevereiro de 2009 18:59)

Por Reynaldo Domingos Ferreira
Trailer do filme

Com impressionantes atuações de Meryl Streep, Philip S. Hoffman, Viola Davis e Amy Adams, Dúvida, de John Patrick Shanley, embora não negue sua origem teatral, é um filme de belo efeito tanto visual como dramático, com cinco indicações ao Oscar, que suscita no espectador a questão do difícil exercício da função de autoridade ante os preceitos da moral e da religião. Trata-se da adaptação da obra homônima de Shanley – Prêmio Pulitzer de Teatro de 2005 – que permaneceu durante um ano (525 apresentações) em cartaz na Broadway, tendo recebido quatro prêmios Tony.

De estrutura seca, enxuta, a peça, apesar de não ser moldada como tragédia, se inicia como Morte Na Catedral, de T.S. Elliot, pelo sermão do padre Brendan Flynn (Philip S. Hoffman), cujo tema antecipa a trama: A dúvida – adverte o sacerdote aos fiéis presentes à missa dominical -, ao contrário do que muitos pensam, pode ser um elo tão poderoso quanto a certeza. Pode ser até mesmo um lume a orientar os nossos caminhos… O vibrante padre Flynn chegara à Escola São Nicolau, no Bronx, Nova York, em plena ebulição da década de sessenta, cheio de idéias novas, tentando acabar ou atenuar os rígidos costumes ali adotados pela diretora, irmã Aloysius Beauvier (Meryl Streep), que, para exercer sua autoridade, acredita na eficácia da imposição do medo e da disciplina aos alunos: – Está na hora, irmã!… A Igreja precisa mudar! – afirma o padre Flynn. Os bons ventos das mudanças políticas e da liberalização dos costumes, que marcaram a época, já sopram, contudo, pela comunidade do Bronx – embalada até mesmo pelo ritmo nada autêntico, por sinal, da bossa nova -, determinando, por exemplo, que, pela primeira vez em sua história, a Escola São Nicolau receba a matrícula de um aluno negro, Donald Miller (Joseph Foster II). Para que Miller, de natureza tímida, se adapte com mais facilidade à escola ante a intolerância dos alunos racistas do estabelecimento, padre Flynn o escolhe como coroinha, isto é, ajudante do sacerdote nas celebrações litúrgicas, como missas e novenas.

O tratamento diferenciado dado por Flynn a Miller acaba, contudo, por despertar a curiosidade da ingênua irmã James (Amy Adams), que passa a suspeitar de que o padre esteja abusando do garoto. Intrigada pelo fato de Miller haver sido chamado pelo sacerdote ao presbitério durante a aula e de lá ter regressado, em seguida, um tanto constrangido e, pior, apresentando sintomas de haver ingerido álcool, a irmã James comunica o fato à irmã Aloysius, que, por sua vez, troveja sobre Flynn. Sentindo-se pressionado, mas, sem ter aparentemente como se defender, o padre aproveita o sermão da missa do domingo seguinte para falar aos fiéis sobre o poder disseminador e maléfico do boato. É essa uma das seqüências mais bonitas do filme, da qual se serve Shanley para arejar sua narrativa com tomadas externas, ilustrativas da metáfora do travesseiro soltando penas de cima de um edifício, captadas pela fotografia, de belo efeito visual e funcionalidade dramática, de Roger Deakins, indicado ao Oscar por outro trabalho estupendo realizado em Foi Apenas Um Sonho, de Sam Mendes. O que categoriza o filme, entretanto, é o duelo das interpretações propiciadas por um elenco afiadíssimo, que sabe tirar proveito máximo não só da construção dramática do texto e das marcações de cena de Shanley como também da fina sutileza e precisão de seus diálogos. Completando com esse trabalho quinze indicações ao Oscar – ou seja, trinta anos decorridos desde a primeira por A Escolha de Sofia, de Alan J. Pakula -, Meryl Streep está soberba no papel da irmã Aloysius Beauvier. Trabalhando apenas com o jogo facial, pois o corpo se anula pelo hábito religioso usado pela personagem, a atriz – única, em sua idade, a receber papéis em Hollywood, segundo reclamações de sua concorrente, Glenn Close – domina a cena, do começo ao fim, mostrando como é espinhoso o exercício da autoridade para pessoa que se julga dona de todas as verdades.

Philip S. Hoffman empresta à interpretação do padre Flynn, com a qual foi indicado ao Oscar de Melhor Ator Coadjuvante, postura de dignidade nos debates que trava com a irmã Aloysius e nas persuasivas conversações que ele mantém com a irmã James: – Não acredite, irmã!…Não houve nada no presbitério. Se você suspeita de alguém, você se volta contra Deus. A atuação de Hoffman é mais vibrante, porém, tanto pelo timbre de voz, como pela expressão facial, ao proferir, no altar, os sermões das missas dominicais. Por sua vez Amy Adams, indicada ao Oscar de Melhor Atriz Coadjuvante, de face meiga e bonita, comove pelo toque de ingenuidade dado à irmã James que, na verdade, personifica, na trama, a própria vulnerabilidade da dúvida: – Não há evidência, nem testemunhas..Eu não creio que padre Flynn tenha feito algo errado. Nisso irmã James faz contraponto à irmã Aloysius, que afirma sempre: Mas eu tenho certezas!… A extraordinária revelação do filme é, sem dúvida, Viola Davis, egressa da televisão –, também indicada ao Oscar de Atriz Coadjuvante -, que, no papel da sra. Miller, dá perfeita lição de interiorização de personagem na cena da discussão que mantém com a irmã Aloysius no pátio do colégio, coalhado de folhas secas que se desprendem das árvores durante o outono. Ela diz na seqüência, que pode ser considerada uma das mais dramáticas do ano: – Meu filho veio para o Colégio, mas os meninos não gostam dele. Só o padre Flynn o protege. É bom com ele, que, em casa, também apanha do pai!…

REYNALDO DOMINGOS FERREIRA

FICHA TÉCNICA

DÚVIDA

DOUBT
EUA/2008
Duração – 105 minutos
Direção – John Patrick Shanley
Roteiro – John Patrick Shanley com base na peça teatral homônima de sua autoria
Produção – Scott Rudin, Célia D. Costas, Mark Roybal e Nora Skinner
Fotografia – Roger Deakins e Matt Turval
Música Original – Howard Shore
Edição – Dane Collier
Elenco – Meryl Streep (irmã Aloysius Beauvier), Philip S. Hoffman (padre Brendan Flynn), Amy Adams (irmã James), Viola Davis (sra. Miller), Joseph Foster II (Donald Miller, Alice Drummond (irmã Verônica), Audrie J. Neenan (irmã Raymond), Susan Blomaert (sra. Carlson), Robert Ridgell (Organista).

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Francisco das Chagas Leite Filho, repórter e analista político, nasceu em Sobral – Ceará, em 1947. Lá fez seus primeiros estudos e começou no jornalismo, através do rádio, aos 14 anos.
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