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Quase 15 horas para ver Hugo Chávez no esquife

FC Leite Filho

Autor de Quem tem medo de Hugo Chávez

Caracas – O leitor se imaginará levando quase 15 horas na rua para um funeral? Foi o que fizemos, eu, e os jornalistas Beto Almeida e Helena Iono, da TV Cidade Livre de Braília, onde trabalhamos como voluntários, e o militante social argentino Paolo Cicuttin, que vive há 30 anos na Itáilia. Fomos ver Hugo Chávez em sua câmara mortuária, no Forte Militar Tiúna, que também é um dos lugares mais belos e aparazíveis de Caracas.

Saímos os quatro, todos sessentões, por volta das 20H45, sexta-feira, oito de março, da arepera Alaska, na Av. Este, centro de Caracas, onde comemos uma reforçada arepa – a tortilla tradicional do país, que serve indistintamente como merenda, almoço, jantar ou café da manhã -, e voltamos para casa quase ao meio dia do sábado, oito. Naquele restaurante simples, repleto, porque era um dos poucos estabelecimentos abertos nestes sete dias de luto pelo presidente, quando pararam indiscriminadamente comércio, bancos, escolas e casas de diversões, assistimos pela televisão ao juramento do presidente encarregado Nicolás Maduro, no Parlamento, em meio à polêmica sobre sua legitimidade ou não para assumir o cargo. Alguém se entusiasmou com o espetáculo da cerimônia, carregada de simbolismo de uma nova Latinoamérica, de prantos, cânticos e alguns protestos, e pediu uma cerveja. Recebeu uma silenciosa negativa da garçonete, pois a lei seca era, igualmente, observada à risca no duello (luto) nacional.

Para chegar ao Tiúna, pegamos um taxi que nos deixou, por volta das 20 horas nos Símbolos, o bairro mais próximo de onde pegaríamos a fila de quase 12 quilômetros de peregrinação à capilla ardiente, da Academia Militar, que abriga o corpo do líder bolivariano. O motorista do táxi, com muito jeito, se confessa antichavista e diz que para ele a melhor democracia é a americana, na qual o presidente é eleito por quatro anos, reeleito por mais quatro, e depois nunca mais pode voltar ao cargo. Perguntamos se ele sabia que a eleição lá é indireta e que, na votação nacional para o colégio eleitoral, a abstenção às vezes beira os 60% e a do Parlamento é controlada pelas grandes empresas e bancos, que mantêm cativos quase todos senadores e deputados. Em contraste, 80% dos venezuelanos votaram na última eleição para presidente e seus deputados não sofrem tanta influência do sistema econômico. O taxista se centrou na periodicidade americana, como se fosse um fim em si mesma, como deixou transpirar, e se criticou no que chamou de continuísmo de Hugo Chávez.
Ao descermos do taxi, nos deparamos com uma temperatura acima de 25 graus, mas muito agradável, por causa da brisa desta cidade serrana próxima à Cordilheira dos Andes e de onde se pode avistar seus imensos maciços. Confesso que fiquei amedrontado com aquele rio humano de dois milhões de pessoas, preguiçosamente, serpenteando por aquele campo que lembra um carioca Jardim Botânico quatro o cinco vezes maior. Tinha antes me despojado de relógio, cartão de crédito e passaporte, com medo de assaltantes, provavelmente influenciado pelo noticiário, segundo o qual a capital caraquenha é a mais violenta do mundo (provavelmente esquecendo os índices alarmantes de criminalidade de São Paulo, Bogotá, México etc).

Discurso de posse de Nicolás Maduro

Logo, o caminante se depara com o alto astral daquele povo alegre e brincalhão, majoritariamente jovem, que, no meio do que deveria ser a maior tristeza devido à perda de seu líder, só queria cantar, bailar, entreter-se e lançar consignas. O hino nacional, cantado de diversas formas, as músicas revolucionárias e de protesto eram as mais ouvidas. Desde o cântico dolente de Ali Primeira, o cantor heróico e ídolo dos bolivarianistas, falecido há 28 anos, num misterioso acidente, a Silvio Rodríguez, Violeta Parra, e ao próprio Hugo Chávez, com sua voz desafinada, a multidão enchia os pulmões quando entoava os versos de Primera, como se escritos especialmente para a ocasião:

“Los que mueren por la vida
no pueden llamarse muertos
y a partir de este momento
es prohibido llorarlos”.

Na verdade, estamos falando do dia 8, quando já haviam transcorrido três jornadas do anúncio do desenlance presidencial. No final da tarde desse dia cinco de março, terça-feira, a notícia provocou um terremoto de sentimentos envolvendo toda uma gente. A dor da orfandade levou as pessoas a uma prostração e a um silêncio que esvaziaram as ruas das cidades, algumas das quais ficaram sem luz, televisão e internet, como aconteceu com Maracai, a 140 quilômetros de Caracas. Os trabalhadores abandonaram tudo, procurando a solidão do lar para chorar e refletir. O governo teve de decretar três dias de feriado, que se estenderiam por toda a semana.

E aí surgiu a oportunidade de ver e se despedir de seu presidente, no outro dia, quarta-feira, seis. Cada um dos 30 milhões de venezuelanos teriam oportunidade de pessoalmente ver seu presidente, exposto em câmara ardente na Academia Militar. Foi o alento que impulsionou todos a sair de casa. O governo franqueou metrôs, ônibuas urbanos e interurbanos para que todos viajassem de graça até o Forte Tiuna.
_________
Homenagem da Telam Argentina, em 04/03/2014

———

Aqui, se pode verificar uma outra faceta do governo bolivariano: a inusitada organização, que impediu as multidões de prorromper em violência e saques, como estava prevendo a imprensa internacional. As Forças Armadas e a unipresente Força Bolivariana, com seus esquadrões chamados Força do Povo, já tinham ocupado as cidades no amanhecer do dia cinco, quando o estado de saúde do presidente tinha piorado irreversivelmente.
Eu só cheguei no dia sete, quinta-feira à noite. O Beto tinha vindo na manhã daquele dia, a Helena, no dia seis, e o Paolo, vindo de mais longe, da Itália, dois dias antes do anúncio. Naquela quinta seis, encontro um ambiente quase normal no Aeroporto, mesmo que mais movimentado, mas as ruas estavam estranhamente desertas para aquele momento, 21 horas. Foi, porém, ao chegar ao Hotel Alba-Caracas, o antigo Hilton, que hoje é estatal e mudou de nome em homenagem à Aliança Bolivariana dos Povos da América, a ALBA, bloco de países criado por Chávez, reunindo Cuba, Nicarágua, Venezuela, Euquador, Bolívia e outras nações caribenhas, que senti mesmo a diferença. O hotel parecia uma casamata: os ascensoristas eram militares fardados e armados; um grupo de quatro a cinco soldados guardavam cada um dos 27 andares. Felizmente, não tinham anulado a minha reserva, que havia feito 15 dias antes, para acomodar a família presidencial e alguns chefes de Estado e representantes estrangeiros convidados para o funeral, como ocorre sempre nessas situações excepcionais.

O espisódio acabou me abrindo oportunidade para que conhecesse os militares bolivarianos, na sua quase totalidade, jovens de 20 a 25 anos, dotados de curso superior, que se caracterizam pela gentileza e um certo temor nos olhos diante dos mais velhos. Dois deles me acompanharam ao meu apartamento 1037 e aproveitei a ocasião para fazer-lhes perguntas sobre suas vidas. Eles responderam de bom grado e só se mostravam mais reservados quando tocava na política.

Eram aqueles meninos que guardavam a enorme multidão em fila indiana no Forte Tiuna, onde não presenciei um só tumulto ou prisão. Eram também eles que serviam água mineral, quando levavámos três horas de espera, vindas de caminhões do Exército. Mais tarde distribuiriam laranjas fesquinhas e, nas imediações da capela ardente, na Academia, quando já tínhamos enfrentado quase 12 horas de fila, um sanduíche de queijo e peito de peru, acompanhado de refrigerante. Imagine-se a logística para distribuir comida ordeiramente e sem atropelos para as multidões de uma média diária de dois milhões, como eles vinham fazendo havia três dias e três noites e continuariam fazendo por mais quatro.
A multidão sentia-se assim estimulada e protegida, ali já quase completamente curada da ressaca cívica, e só contava em ver seu comandante. Essa multidão, vinda na maioria dos outros 23 Estados, era constituída de pelo menos 60% de jovens, entre 15 e 25 anos, muitos alfabetizados e graduados pelas novas escolas propiciadas por Hugo Chávez.
Martinez Alvaraz, de 22 anos, de corpo esbelto, já tendo sido mãe de um casal, vinha do Estado de Anzuategui. Tinha se formado em administração de empresas por uma das universidades bolivarians experimentais e trabalhava numa organização social. Perguntei-lhe o que a trazia de tão longe: “O amor do presidente. Ele me ensinou a viver e me ensinou a amar. Estou aqui para me despedir de seu corpo e cuidar para que seu projete continue avançando. Ninguém vai permitir um só passo artrás”.
Quando me respondia Martinez, o telão da TV mostrava o discurso de posse de Nicolás Maduro, feito horas antes diante do Parlamento no momento em que dizia: “(Chávez) Foi traído e vilipendiado, mas não puderam com ele por causa de seu escudo de pureza como filho de Cristo”.

Martinez se comoveu e disse, apontando para a figura maciça e bonachona de Maduro: “Ele parece ser gente boa e vai fazer de tudo para preservar as conquistas da revolução”.
Que conquistas são essas, na realidade? A bailarina Damelis Asprino, de 15 anos, residente numa das favelas próximas ao Tiuna, o Valle, no Monte Ávila, fazia o primeiro ano da bacherelato (escola secundária). Lá recebia, café da manhã e dus outras refeições por dia, mas se quisesse podia almoçar em casa, chegando às sete e saindo às 17 horas. Lembrei-me dos 500 CIEPs do Brizola, no rio de Janeiro, que seus sucessores, criminosamente dilapidaram. Luis Montero, um taxista, disse que estava terminando tecnolgia da informação, a nova febre de saber, que o governo está estimulando em todo o país. Ele pretende ingressar na rede digital do país, com uma das internets mais rápidas do mundo ou senão abrir um negócio próprio. As ambulantes Alda Villegas e Carmen Hernández diziam ter sido contempladas pelo progrma de habitação popular, que já distribuiu quase 500 mil casas e apartamentos. Outros falavam dos mercados populares, onde a comida ficava pela metade do preço, dos 14 salários anuais, inclusive o aguinaldo, a gratificação natalina; o reajuste de jubilados, muitos dos quais recebiam menos de 10 dólares por mês e hoje ganham o salário mínimo, o mais alto da região, os programas de financiamento dos eletrodomésticos fabricados pela China, que também, junto com o Brasil, Argentina e Peru, estão ampliando o metrô, o metrocable e agora o BusCaracas e construindo 35 mil quilômetros de ferrovias e outro tanto de rodovias.
O sol que escaldava desde às sete horas da manhã, como ocorre no Caribe, estava a pino, quando nos aproximamos de Hugo Chávez. A fila transforma-se num caracol de mais de dez voltas, dando a impressão de que não saíamos do lugar. Mas, aqui, a Guarda do Povo, postada a cada grupo de 20 pessoas, assegura mais organização e funcionamento. Antes, tinha havido protestos por causa de alguns sabichões que vinham sorrateiramente furando a fila e a fizeram parar em quase uma hora. Também tinha havido outra demora por causa da troca de guardas e serviço de limpeza na capela. A limpeza era outro problemão a resolver. Tanto soldado e tanta organização não dava conta de limpar as vias de garrafas, plásticos e restos de comida, que se acumulavam por causa da ausência de lixeira suficiente. Os banheiros públicos emitiam um forte odor acre, que incomodava. Era gente demais e nenhuma organização consegue ser perfeita.

O povo começa a se emocionar no caracol, porque sabe que, finalmente, verá o comandante. Entoa “Viva Chávez”, o hino nacional, a canção Palante Comandante Chávez, e Los que mueren por la vida, de Ali Primera. O ambiente aos poucos se soleniza. Na entrada da capilla, o ataúde, coberto pela bandeira nacional, amarelo-azul-vermelho, e tendo na parede um crucifixo de Cristo, novamente a bandeira nacional e uma bandeira do Exercito, a arma de Chávez. O aprumo da Guarda de Honra me faz lembrar a solenidade do esquife que guardava o corpo embalsamado de Vladimir Lênin, no mausoléu da Praça Vermelha, de Moscou, onde levei três horas para chegar, em 1978.
Tenho menos de um minuto para ver Hugo Rafael Chávez Frías pela frestra do vidro do caixão. Ele está sereno, bem mais magro que suas últimas aparições, lembrando o rosto afilado do cadete que há 41 anos entrou na Academia, com seu ardor revolucionário e, segundo Beto Almeida, com um livro de Che Guevara escondido sob o uniforme. A morte tinha se encarregado de desinchá-lo e a maquiagem o rejuvenesceu. Mas ali estava ele, altaneiro, um pouco triste talvez por partir. Mas era ele, Hugo Chávez, que a língua venenosa da canalha midiática teimava em negar e vilipendiar.

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Obs: Fico devendo nossas fotos. Não deu tempo de postá-las. Mas o farei em breve e também mandarei outras notícias de Caracas, onde permaneço até o dia 19, pois vim para lançar meu livro na Feira Internacional do Livro, que se abriria no dia oito, mas foi suspensa, devendo começar a funcionar na próxima quarta-feira.

leitefo
leitefo
Francisco das Chagas Leite Filho, repórter e analista político, nasceu em Sobral – Ceará, em 1947. Lá fez seus primeiros estudos e começou no jornalismo, através do rádio, aos 14 anos.
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1 COMENTÁRIO

  1. Comovente matéria sobre este momento histórico que vivemos todos juntos há 1 ano, nesta irreparável tragédia que foi a perda deste gigante que foi Hugo Chávez. Naqueles 10 dias que comoveram o mundo, estremeceram as fibras dos seres deste planeta, com dor, lágrimas, silêncio, palavras e cantos, a humanidade inteira, se concentrou neste funeral, representada por todos aqueles que puderam de várias partes do mundo, desfilar em torno da câmera ardente de Hugo Chávez, para render homenagem e juras de continuar o seu legado, que é o sonho dos justos desta terra. Por isso, vemos um povo venezuelano, agora 1 ano após, que continua resistindo com bravura, junto ao seu presidente constitucional, Nicolás Maduro, diante das tentativas golpistas de acabar com aquele farol que ilumina o mundo (a revolução bolivarian), em pé de luta, forças armadas unidas a seu povo, o mundo inteiro, a Unasur, a Celac que a Venezuela Chavista (com Cuba) protagonizou, os Países Não Alinhados, a Russia de Putin, dispostos a dar continuidade ao projeto revolucionário e socialista, que com a morte deste gigante, transcendeu as fronteiras de Venezuela.

    Obrigada por esta sua matéria, e dizer por nós, aí presentes, o que gostaríamos de comunicar a nossos amigos (as) e internautas do mundo. Envio para você, abaixo, para ilustrar o seu artigo, aquele video que fizemos na época nestes momentos do funeral que você descreve. Ele merecia uma re-edição melhorada, mas pelo momento é o que temos.

    Abraços e solidariedade infinita!!

    Helena

    ps://www.youtube.com/watch?v=K0FJ49URLSY&list=TL14EoUP14fwS2f34kiIGDuPpvp0Yd1cJt

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