(Editorial de Carta Maior, por Saul Leblon) )A seleção brasileira foi mastigada até a alma pelas mandíbulas alemãs nesta 3ª feira, na disputa das semifinais da Copa do Mundo.
Depois de tomar quatro gols em seis minutos no primeiro tempo, a equipe montada por Felipe Scolari tirou o uniforme e vestiu o manto de um zumbi coletivo.
Morta, arrastou-se pelo gramado do Mineirão, de onde saiu carregando o fardo de uma goleada histórica por 7 x 1.
A derrota atinge a estrutura do futebol brasileiro.
A exemplo do que ocorreu na economia nos últimos trinta anos, o futebol viveu um processo de primarização.
Clubes que deveriam ser fontes de talentos, com forte investimento em categorias de base, tornaram-se exportadores de brotos verdes.
Ao ensaiarem seu diferencial nos gramados, garotos já são monetizados e remetidos a clubes do exterior, que cuidam de completar sua formação.
Alguns, caso de David Luiz, só para citar um exemplo, voltam depois consagrados, quase desconhecidos aqui, para compor uma seleção que convive mais tempo no avião do que nos gramados.
Nas cadeias da globalização da bola, o Brasil se rendeu ao papel de fornecedor de matéria-prima.
A dependência financeira dos clubes em relação às cotas de transmissões esportivas dos grandes campeonatos regionais e nacionais é outro torniquete da atrofia que explodiu no Mineirão.
As redes de tevê ficam com a parte do leão da publicidade milionária das transmissões futebolísticas –fonte de uma das maiores audiências da televisão brasileira.
Donas do caixa, redes como a Globo, fazem gato e sapato dos clubes, obrigando jogadores a uma ciranda insana de tabelas e competições que se sobrepõem em ritmo alucinante, para servirem à conveniência das grades e da receita publicitária.
É praticamente impossível sobreviver fora da ciranda e, dentro dela, impera o imediatismo: não há tempo, nem recurso, para investir em formação de atletas nas categorias de base.
A pressão brutal por resultados –-se não ‘subir’ ou, pior, se ‘cair’, o clube perde a cota da tevê– obriga dirigentes à caça insaciável por jogadores tarimbados, em detrimento da revelação própria nos quadros juvenis.
A reiteração entre audiência e cotas premia os clubes maiores criando um círculo de ferro que condena o grosso das demais agremiações à marginalização.
No triênio 2016/19, por exemplo, a Globo prevê pagar R$ 4,11 bi por direitos de transmissão no Brasil. Desse total, três clubes, Corinthians, Flamengo e São Paulo ficarão com quase R$ 500 milhões.
O restante será rateado pelas agremiações do resto do país.
No futebol inglês e no alemão, o critério é mais equânime.
Na Alemanha a verba é dividida em cotas iguais entre todos os clubes. Na Inglaterra, 70% do total é dividido em partes iguais, ficando 30% para ‘prêmios’ por classificação e audiência.
Na Alemanha, ademais, há uma rede capilarizada de escolas de futebol, que compõe um sistema nacional de formação de atletas, revelação de talentos, bem como preparação de técnicos e juízes.
Centros de treinamento de alto nível focados em categorias de base, como o do São Paulo FC, são raros no Brasil, que viu morrer o celeiro do futebol de várzea sem que se pusesse nada no lugar.
Adestradas na lógica da mão para a boca, as torcidas se transformam em certificadoras dessa engrenagem sôfrega.
Não raro com o uso da violência, cobram resultados e contratações milionárias dos cartolas, que usam o álibi das uniformizadas para a rendição incondicional ao mercantilismo esportivo.
Ao contrário da equidistância que seus candidatos cobravam de Dilma ainda há pouco, quando o time de Felipão avançava na classificação, a derrota nacional na Copa do Mundo certamente será explorada pelo conservadorismo.
A disputa pelo imaginário brasileiro ganhará decibéis redobrados a partir de agora, na tentação rastejante de transformar a humilhação esportiva na metáfora de um Brasil corroído pelo ‘desgoverno petista’.
O tiro pode sair pela culatra.
A tese não é apenas oportunista.
Ela é errada.
O que acontece é simplesmente o oposto.
A estrutura do futebol brasileiro, na verdade, está aquém dos avanços sociais e políticos assistidos no país nas últimas décadas.
Há um descompasso entre a sociedade e o gramado.
A caixa preta da Fifa –reafirmada no intercurso entre cambistas e filhos de dirigentes, como se viu em episódio recente no Rio de Janeiro– é apenas a expressão global do sistema autoritário e nada transparente dominante em várias ligas nacionais.
A do Brasil, com a CBF, é um caso superlativo.
Dominada por um punhado de coronéis da bola, requer um corajoso processo de oxigenação, equivalente à reforma preconizada por Dilma para o sistema político brasileiro.
Trata-se de democratizar os centros de decisão, bem como as legislações relativas à compra e venda de atletas, evitar sua venda precoce ao exterior, ademais de remodelar os circuitos das competições e libertar o caixa dos clubes da tutela asfixiante das tevês, para que possam , de uma vez por todas, converterem-se, de fato, em academias de formação e difusão esportiva.
O conjunto atinge diretamente o núcleo duro dos interesses e valores com os quais o conservadorismo compactua para voltar ao poder.
A quem desdenha da necessidade de um planejamento nacional em qualquer esfera –da industrialização, ao direcionamento do crédito, passando pelo controle de capitais e do câmbio– cabe perguntar: se não temos uma política nacional para o futebol, como se pode pleitear uma seleção nacional à altura das nossas expectativas?
Enquanto ficamos na dependência de um Neymar, o grupo da Alemanha joga junto há 10 anos.
Pode-se manipular o imaginário da derrota na catarse das próximas horas. Mas será difícil sustentar o oportunismo se ele for confrontado com uma visão clara e desassombrada das linhas de passagem que podem devolver ao futebol brasileiro o brilho que ele já teve um dia, e ao seu torcedor, a alegria trincada neste sombrio oito de julho de 2014.