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Memórias de O Sal da Terra, sobre Sebastião Salgado

‘O Sal da Terra’ é a refloresta que precisamos
A captura da alma alheia é a captura da alma de quem vê – e que, ao ver, registra e, ao registrar, empresta o que nos falta de coragem
por Matheus Pichonelli, da Carta Capital — publicado 10/04/2015 15:29, última modificação 10/04/2015 15:33

Viajei com meus pais para o interior de Minas em dezembro de 1993. Nascidos e criados na cidade, eles tinham acabado de vender uma chácara de lazer perto de casa para uns usineiros e, na troca, compraram um bom pedaço de terra entre João Pinheiro e Pirapora. Para chegar ao local, andávamos e andávamos por estradas vicinais, passagens de terra, mata-burro, porteiras. Não havia nada na fazenda a não ser umas poucas vacas, uma queda d’água, algumas construções de pau a pique e uma casa de teto sem forro onde moravam os caseiros.

O empreendimento nunca foi pra frente, e logo a família se desfez das terras, mas aquela viagem eu nunca esqueci. Aos 11 anos, era provavelmente a primeira vez que eu dormia numa casa sem tevê ligada, sem espelho no banheiro, sem brinquedos no armário e sem telefone por perto para pedir pizza depois das 22h. A falta de tudo me levava a ficar entediado à espera do retorno, sonhando acordado com os presentes do Natal que se aproximava.

Um dia, pela manhã, acordei meio atordoado com a cabeça fora do colchão espalhado pelo chão e me deparei com um escorpião. Nunca tinha visto um. No meu berro, a dona da casa correu para matar o bicho.

Naquela semana em que, sem saber, conhecia o Brasil profundo, eu conhecia também a morte. Não importava o quanto nossas famílias se esforçassem para dirimir as diferenças entre a vida no campo e a vida na cidade ao dividir o mesmo teto e a mesma mesa: os filhos daquele casal, entre eles uma bebê de alguns meses que eles chamavam de Galega, estariam sempre mais vulneráveis aos limites entre a vida e a morte.

Aquele escorpião era uma mensagem de agouro. Quando voltamos, recebemos um telefonema, alguns meses depois, com a notícia de que a Galega, o bebê do casal, estava morta. Não por picada, mas com alguma doença contra as quais éramos imunizados na cidade logo ao nascer. Jamais assimilei direito aquela dor e durante meses, anos daquela adolescência que se iniciava, tentava me convencer que a perda, naquele espaço, possuía uma outra dimensão.

A morte, imaginava, só doeria de fato em contraste com a vida. E aquele lugar, cercado de cruzes enterradas em beiras de estrada, tomado por escorpiões e outros animais peçonhentos, era, para mim, a morada de uma morte programada para mais dia, menos dia. Isso, raciocinava eu, aos 11 anos, era uma vantagem daquelas populações: a morte era tanta que não apavorava. O que era perder um filho pra quem já havia perdido pai, mãe, tios, avós, sobrinhos, irmãos? Eles eram, afinal, diferentes de nós, meninos da cidade, criados pra brilhar e não pra morrer de fome.

Nisso acreditava e nisso me apoiei durante anos. Aquele pensamento precário me fez driblar a comoção e adiou uma conclusão que a imaturidade já despontava: a de que a miséria é miséria em qualquer canto, que as riquezas de fato são diferentes, mas a dor da perda não dói menos em quem sofre mais. Isso me levaria a concluir que tinha também parte naquilo.

Voltava à minha vida ordinária no esquema escola-cinema-clube-televisão e aos poucos assimilava a ordem que ensinava: o que os olhos não veem o coração não sente. Era como trocar de canal diante de uma cena forte ou fechar os olhos para não testemunhar a violência gratuita – como sempre faríamos desde então. Era uma forma cínica de seguir adiante.

Um ano depois, os pensamentos haviam desanuviado e nossa compaixão era unidade de medida entre iguais. E nossos iguais estavam vivos. Em 94, a fazenda havia sido vendida e eu guardei na memória todos os lances da minha primeira Copa, tema de infinitos trabalhos escolares que me ensinaram o que eram as quartas de final mas nada diziam sobre nossos contemporâneos trucidados em lugares como Ruanda. Quem se importava com eles?

Que me lembre, nunca mais fiz uma viagem como aquela. Nunca mais vi a morte de tão perto – e até as que eventualmente nos caíam ao colo eram devidamente civilizadas por seus ritos, passagens, velórios e despedidas. O mundo, então, era uma tela quadrada vista por um aparelho de tevê, dos livros ou pela tela do meu cinema favorito. De lá, me agarrei na cadeira por retornar, inconscientemente, àquela viagem ao coração de Minas durante a exibição de O Sal da Terra, documentário de Wim Wenders sobre a vida e a obra de Sebastião Salgado. No filme, tive testada minha coragem deixada e abandonada em algum canto de Minas Gerais. Até então, só Guimarães Rosa parecia conhecer o caminho de volta – e a obra de Salgado não é outra se não um Grande Sertão: Veredas desenhado em luz e sombras.

Vê-lo falar da imagem e suas circunstâncias, e dos homens e suas circunstâncias, é como estourar as paredes de uma humanidade represada pelo (não) olhar. Essa dimensão humana é uma contradição simbiótica: em busca da vida do planeta profundo, encontramos a morte. Ela se espalha por todos os lados. Há caixões para aluguel no Nordeste. Há corpos empilhados em Ruanda. Há ossos expostos sem fratura na Etiópia. E há dor.

Nesses campos abertos e fotografados, os ritos são outros: a guerra desumaniza, mas não nos toma a alma. Nem mesmo quando o pai se desfaz do corpo do filho recém-nascido, lança-o sobre um amontoado de mortos à beira da estrada, e segue o caminho. A vida, diria outro mineiro, o poeta Carlos Drummond de Andrade, é sobretudo uma ordem. Mas a vida apenas, sem mistificação. O registro dessas pequenas grandes tragédias cotidianas e sem mistificação é o registro da alma esfolada, maltratada, adormecida, em pânico. Mas alma.

Aqueles olhos fotografados eram os olhos de quem, ainda criança, contestei a alma e subordinei a dor. Já adultos, aprendemos no jornalismo que a impessoalidade é a virtude do bom repórter: quanto menos o envolvimento, maior o distanciamento, melhor a leitura. Salgado, mostra o filme, é a contravenção dessa norma. Para saber o que sentem os olhos de quem sente é preciso também sentir. É preciso ser um deles. A captura da alma alheia é a captura da alma de quem vê – e que, ao ver, registra, e ao registrar, empresta o que nos falta de coragem – e o que a vida pede é coragem, ensinava Guimarães Rosa, que tanto ecoa nas imagens projetadas ao longo do filme.

Como o autor mineiro, que deixava o jaleco da medicina para se travestir de sertanejo para só então saber o que é sertanejo, ou ser sertanejo, Salgado mergulha, se afunda, se veste. E nós, que jogamos farelos de pão no caminho para não correr riscos de nos embrenhar, só imaginamos se ele não tinha medo de ser flechado pelas tribos fotografadas. Ou imolado no contrafluxo do genocídio. Ou devorado pelos orangotangos e ursos e morsas e baleias de quem se aproximava com as lentes e as mãos estendidas para a amizade. “Estávamos em um pequeno barco e a baleia não nos tocou. Eu colocava a mão nela e via sua calda balançar a 30 metros”, relata Salgado, como se descrevesse uma experiência em cinema 3D.

Essa coragem de correr riscos sem medo da vertigem das escadas em Serra Pelada chega a ser um assombro pra quem, desde a viagem a Minas, só viu o mundo a partir de uma sala de projeção. Nesta sala, peguei emprestada não a lente, mas a alma de quem viu a morte tantas vezes tão de perto. A morte que, por ironia, fora encontrada em seu estado mais banal, a cova rasa ou a céu aberto, quanto mais fundo ele se embrenhava pelo mundo. Então é isso o que acontece fora de nossos quintais? É isso o que acontecia no tempo em que sonhávamos?

A volta de Salgado à fotografia é a volta ao ponto de origem. É a volta à vida que parece escapar. Seu último projeto, Gênesis, levou-o a espaços ainda virgens do Planeta – exatamente a metade de tudo o que existe e permanece como no princípio. Talvez este seja o grande retrato do nosso tempo: já não há o que fazer se não olhar e recomeçar. E o recomeço está onde não começou. Onde começou é preciso replantar. Reiniciar.

A caminhada do pai que deixa o filho morto pelo caminho não é o começo do fim, mas o fim de um começo. Que é preciso ser lembrado. Como as nascentes recriadas na fazenda dos Salgado após o replantio de dois milhões de mudas de espécies de Mata Atlântica. Pois para o retorno é preciso o superlativo. É preciso ser árvore, ensinava outro poeta, Manoel de Barros. Sem o superlativo não há coragem. Sem coragem não há olhar. Sem olhar não há renascimento possível. Não há sobreviventes em Ruanda. Nem Galega. Nem alma devolvida ao seu lugar: os olhos. O Sal da Terra é a refloresta que precisamos para ontem.

leitefo
leitefo
Francisco das Chagas Leite Filho, repórter e analista político, nasceu em Sobral – Ceará, em 1947. Lá fez seus primeiros estudos e começou no jornalismo, através do rádio, aos 14 anos.
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