(Matéria do jornal Página12, reproduzida pelo site Carta Maior) Depois de oito anos no governo, e a doze anos da chegada de Néstor Kirchner à Casa Rosada, Cristina Fernández de Kirchner deu ontem o seu último discurso como chefe de Estado, diante de uma multidão de centenas de milhares de pessoas que se reuniram para se despedir, em um momento histórico para a democracia argentina. Após encabeçar seu último ato oficial, CFK foi até a Praça de Maio, onde se despediu dos seus simpatizantes, e deixou uma mensagem ao seu sucessor, Mauricio Macri: “só peço a Deus uma coisa: que aqueles que nos sucedem por império da vontade popular, depois desses quatro anos em que terão a responsabilidade de conduzir os destinos da pátria, possam aparecer aqui em frente a uma praça como esta e falar com todos os argentinos e olhar nos seus olhos”.
Vestida de branco, sobre um diminuto cenário adornado com bandeiras argentinas, enquanto o sol se punha atrás do Cabildo e a manifestação armada com bandeiras das agrupações que a apoiaram durante seu governo e cartazes escritos a mão, Cristina Kirchner assegurou que queria ter entregado o poder na Assembleia Legislativa, “o órgão máximo de representação da vontade popular” e reclamou, sem mencionar a juíza María Servini de Cubría, pelo fato de a Justiça ter aceitado a medida cautelar que a ordenava cessar seu mandato no último minuto de ontem.
“Eu não posso falar muito porque à meia-noite eu me transformo em abóbora”, brincou a mandatária. Antes, mais séria, ela disse que viu “muitas medidas cautelares, mas nunca na minha vida eu pensei que haveria um presidente cautelar por doze horas em nosso país”, em referência à decisão da juíza. “Foi frustrante, depois de o povo argentino ter votado três vezes, ver que o país terá como presidente, ainda que por algumas horas, alguém por quem ninguém jamais votou. Nenhum argentino merecia isso, nem 51% que votaram por eles (oposição) nem os 49% que votou por nós. Com este estado de coisas, todos os argentinos estamos um pouco em liberdade condicional”, agregou.
A presidenta recordou que “nunca, desde que existe o voto popular, houve um período histórico em que um projeto chegou ao seu quarto governo assumindo o poder de forma ininterrompida”, e pediu que, no futuro, haja “um maior grau de democracia, que possa alcançar os três poderes do Estado”, numa das muitas referências que fez ao comportamento do que chamou de Partido Judiciário. “Necessitamos que os poderes do Estado se democratizem e não sejam arietes contra a democracia, contra os governos populares e muito menos contra o povo. Independente das diferenças políticas, o mais importante é mostrar respeito à vontade popular.”
Nessa hora, o crepúsculo já se fazia notar na Praça, que continuava abarrotada, com pessoas ocupando inclusive ruas contíguas – o governo calculou cerca de 700 mil presentes –, para escutar as palavras de CFK, mesmo com o sistema de áudio apresentando problemas. Alguns carrinhos de choripán (típico sanduíche de linguiça argentino) e hambúrguer contavam com rádios AM ligado no máximo volume e ajudaram a transmitir o discurso. A multidão estava composta em proporções similares por colunas de organizações kirchneristas, com bandeiras de todas as cores, e por pessoas de todas as idades, que acompanhavam amigos ou famílias inteiras, para serem testemunhas do momento histórico. Das janelas do Ministério de Economia, do Banco Central e outros edifícios adjacentes assomavam os curiosos, com binóculos e câmeras fotográficas.
“Eu os escutei, os escuto e os escutarei sempre”, disse Cristina a todos eles. “Quero dizer que se depois destes intensos doze anos e meio, com todos os meios de comunicação hegemônicos contra, com as principais corporações econômicas e financeiras nacionais e internacionais contra, sob perseguição e hostilidade permanentes por parte do Partido Judiciário, se depois de tudo isso, com tantos grupos e interesses contra nós, ainda assim pudemos fazer tanto pelos argentinos, me pergunto quanto podem fazer os que terão tudo isso a seu favor”, completou.
CFK estava sozinha no pequeno cenário montado para ela. Abaixo, a esperavam todos os funcionários e dirigentes partidários, figuras que participaram do seu último ato oficial: a inauguração de uma escultura de Néstor Kirchner que adornará o Salão dos Bustos da Casa Rosada, junto com outros ex-mandatários. Entre os presentes, destaque para o mandatário boliviano Evo Morales, que foi a Buenos Aires para participar da despedida, especialmente convidado pela agora ex-presidenta.
Em seu discurso final, a mandatária dedicou palavras especiais ao jornalismo, com quem manteve uma tensa relação durante seus dois mandatos: “Além das conquistas sociais, do progresso econômico, das conquistas dos trabalhadores, dos comerciantes, dos empresários, dos intelectuais, dos artistas e dos cientistas, espero que os jornalistas tenham a mesma liberdade de expressão que tiveram como nunca nestes anos. Espero uma Argentina sem censuras, espero uma Argentina sem repressão, uma Argentina mais livre que nunca, e isto não é uma concessão, por favor, isto é o direito do povo”, disse.
Também fez referência à situação econômica e à “euforia dos abutres”, mas se manifestou “convencida de que existe hoje uma consciência nacional” a respeito do endividamento, que “não é uma questão ideológica, mas sim uma questão estritamente operativa, pensando no país e em sua economia”, agregou. “E que não me venham com que é necessário fazer isso ou aquilo, porque quando Néstor assumiu estávamos com uma mão na frente e a outra atrás, ninguém tinha dinheiro para nada, devíamos 166% do PBI, mas sabem de uma coisa? Se houve um homem neste país que soube construir autoridade e respeito para esta Casa Rosada, se chamou Néstor Carlos Kirchner”, completou.
Numa mensagem dirigida ao seu sucessor, Cristina disse que “a autoridade, não o autoritarismo, se constrói com respeito e a confiança do povo” e que esta “se alcança de uma só forma”, sem “fórmulas mágicas”, nem “alquimias raras”, nem “patentes de invenção para construir confiança popular e social”. Para CFK, “a confiança se constrói quando cada argentino, pense como pense, sabe que quem está sentado na cadeira que comanda esta casa é o que toma as decisões, e que quando o faz, é em benefício das grandes maiorias populares”.
Nesse sentido, ela se manifestou satisfeita pelo trabalho realizado durante os últimos doze anos. “Podemos olhar nos olhos das Mães e Avós da Praça de Maio, dos filhos e netos a quem respondemos sua demanda histórica por memória, verdade e justiça. Podemos olhar nos olhos dos trabalhadores para dizer a eles que nunca os traímos. Podemos olhar nos olhos dos cientistas e dizer que reconhecemos os seus direitos, dos trabalhadores da imprensa e dizer que nunca tiveram a tanta liberdade quanto no nosso governo. Podemos olhar nos olhos dos comerciantes, empresários e produtores, dos docentes, dos aposentados e dos jovens”, disse.
Embora não tenha mencionado o nome de Mauricio Macri em nenhum momento, a cada referência a ele, a multidão vaiava ou gritava “processado, processado”, recordando a causa por escutas ilegais contra ele na Justiça.
Embora não tenha deixado definições precisas sobre seu futuro político em sua mensagem, Cristina deixou claro que o final de seu segundo mandato não será o final de sua carreira política. “Nossa responsabilidade é muito maior, porque construímos esta Argentina, a deixamos desendividada como nunca antes. Uma Argentina que já tem 119 netos recuperados, que é um exemplo para o mundo de que não deve haver impunidade para crimes contra os direitos humanos”, assegurou a mandatária. “Temos que ser mais maduros, porque nós amamos a pátria, acreditamos no povo, no que fizemos e na atitude positiva que tivemos, para que essas conquistas não sejam destruídas”, disse, a respeito do futuro.
Finalmente, se dirigiu aos 42 milhões de argentinos para dizer que “cada um tem um dirigente político dentro de si, e quando sintam que aqueles em quem depositaram o seu voto o traíram, tomem sua bandeira e saibam que vocês mesmos são os dirigentes do seu destino e construtores das suas vidas”. Para CFK, “esse é o presente mais importante” que o povo argentino lhe entregou durante sua presidência: “o empoderamento popular, o empoderamento da cidadania, o empoderamento dos direitos”, explicou.
O ato terminou pouco antes das nove da noite. O enorme público presente na Praça continuou por ali alguns longos minutos mais. Os sorrisos e as lágrimas se mesclavam nas dezenas de milhares de rostos. Os amigos se abraçavam entre si e com desconhecidos. Enquanto as pessoas se dispersavam, em direção a San Telmo, ao Congresso ou ao Obelisco, as comitivas oficiais saíam pelo Paseo Colón, escoltadas pelas sirenes policiais. Cristina Fernández de Kirchner, rodeada por sua família, concluía os últimos detalhes antes de deixar a Casa Rosada pela última vez.
Tradução: Victor Farinelli