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A punição dos senhores embaixadores

(Publicado originalmente em Seg, 15 de Dezembro de 2008 16:09)

Por FC Leite Filho

A expulsão dos embaixadores da Bolívia, Phillip S. Goldberg, e da Venezuela, Patrick Duddy, em 10 e 11 de setembro últimos, no que chamo do terceiro 11 de setembro (os primeiros foram a queda do Allende, em 1973, e o segundo, das Torres Gêmeas, de Nova York), coincidiu (só coincidiu?) com o fim das hostilidades contra o governo Evo Morales e fortaleceu o presidente Hugo Chávez.

Por quê? Porque, historicamente, os embaixadores americanos têm-se enfileirado como os grandes incentivadores e arquitetos dos golpes de estado nos países latino-americanos, desde fins do século retrasado, o XIX. O problema é que nenhum de nossos governos teve a ousadia (ou as condições necessárias), que agora demonstram Evo e Chávez.

Só para ilustrar, trago hoje o novo livro de José Augusto Ribeiro, recentemente editado pela Panorama Editora, em dois volumes ricamente encadernados e intitulado “Jânio Quadros & José Aparecido – O Romance da Renúncia”. Nele, o jornalista relata os dramas e as pressões que Jânio enfrentou (e que acabaram por resultar no seu afastamento, apenas seis meses depois de ter assumido, constitucionalmente, a presidência da República) para sustentar sua experiência de política externa independente.

Num desses episódios, Jânio Quadros, que, ao contrário da imagem que hoje lhe pinta a mídia, era um presidente altivo, com profundo senso nacionalista, quase expulsou da sala um desses embaixadores, que lhe foram pedir, em março de 1961, a ajuda do Brasil para invadir Cuba e derrubar o líder Fidel Castro.

O embaixador em questão era nada mais e nada menos que Adolf Augutus Berle Jr., vindo na qualidade de representante plenipotenciário do então presidente John Kennedy. Berle Jr., um antigo agente do macartismo e a quem se atribui ter arquitetado a derrubada do presidente Getúlio Vargas, em 1945, no fim do Estado Novo, tinha saído praticamente corrido do país, em 1946, justamente por suas ingerências em nossos negócios.

Este era o homem que, ingênua (ou arrogantemente), o jovem e glamoroso presidente Kennedy, de 44 anos, encarregava para a complexa tarefa de atrair o pundonoroso e também jovem presidente brasileiro (Jânio também tinha 44) para invadir Cuba, através de uma ação “coordenada” da OEA, a Organização dos Estados Americanos, sempre tutelada a partir de sua imponente sede em Washington D.C.

Ciente do perfil e do histórico de Berle Jr., Jânio prepara-lhe uma peça, muito ao estilo moleque brasileiro, quando vai recebê-lo no Palácio do Planalto, e não no Rio, como queria o embaixador. Diz o relato de José Augusto Ribeiro: “Ao chegar a Brasília (vindo do Rio de Janeiro), Jânio não poderia ir diretamente para o Palácio do Planalto, onde receberia Berle. Pediu, então, que Jair (Carvalho Monteiro, que vinha com ele no avião) preparasse o cenário do encontro. Queria que Jair retirasse de um armário uma fotografia emoldurada, presidente da Iugoslávia comunista (e bicho-papão para os macartistas), com dedicatória a Jânio, em lugar de destaque , voltada para a cadeira na qual Berle se sentaria”.

Ao ser indagado tempos depois pelo escritor, já fora da presidência, à que renunciou abruptamente, em 25 de agosto de 1961, em protesto contra a ingovernabilidade, Jânio Quadros “foi tomado de emoção, talvez a mesma indignação do encontro com Berle. E reconstituiu suas próprias palavras:

– Embaixador, respondi a Berle, não tenho como Presidente da República, a prerrogativa constitucional de mandar tropas brasileiras para tal missão. E não vou pedi-la. Se o fizesse, as pedras do calçamento se levantariam do leito das ruas para me abater. Os senhores, com atitudes como essa, vão produzir um novo Fidel Castro na América Latina. Rezem para que não seja eu!”

José Augusto Ribeiro ainda arremata: “Quando Berle, dando-se conta de que era praticamente posto por Jânio para fora de seu gabinete, entrou atarantado no banheiro anexo, um ajudante de ordens entrava na sala por alguma razão e dirigiu a Jânio um olhar estarrecido:
– Deixe – disse Jânio -. No banheiro ele terá água para esfriar a cabeça”.

Comparado à verdadeira ação de insurgência do embaixador Lincoln Gordon contra o presidente João Goulart, em 1964, o episódio de Berle Jr. com Jânio é café pequeno, não obstante ser muito sintomático. No meu livro, “El Caudillo – Leonel Brizola – Um Perfil Biográfico”, também publicado neste ano de 2008 pela Editora Aquariana, falo daquele scholar com PhD em Oxford, que trabalhara no Plano Marshall de Roosevelt a e assessorara Harry Truman, a quem não faltava o charuto flegmático:

“Estas credenciais acadêmicas e de homem de Estado, no entanto, não o impediram de atuar como um dos americanos que mais se imiscuíram nos assuntos internos e nos fuxicos da política brasileira. Vivia viajando pelo interior e pelas grandes capitais, granjeando a amizade de importantes interlocutores, nos diversos ramos do poder no Brasil. O próprio João Goulart o considerava um amigo”.
Ainda lembro, com base nos documentos redigidos e assinados pelo próprio Lincoln Gordon, existentes à disposição do público no National Archives, de Washington, em que relata seus encontros privados com Jango, faço menção a um específico, quando afirmo: “Noutro despacho, no. 16333, de 23/02/1963, mostra como realmente interferia no governo, ao pedir satisfação quanto a nomeações, inclusive para postos sem muita evidência, que teriam sido destinados a “comunistas” ou a brizolistas”.

Eu agora me pergunto, se João Goulart tivesse expulsado Lincoln Gordon, tantas vezes sugerido por Leonel Brizola, como agora o fazem Evo Morales e Hugo Chávez, não teria evitado ou mesmo atravancado o golpe de 1964? Seja como for, o importante é assinalar que o Brasil também tem uma tradição de repelir com bravura a interferência estrangeira.

Outro livro, igualmente publicado em 2008, sob o título “Floriano, o Marechal Implacável”, de J. Natale Netto, da Editora Novo Século, lembra como Floriano, o segundo presidente da República, rechaçou um pedido de audiência de comandantes de navios estrangeiros atracados na Baía da Guanabara. À frente Inglaterra, Alemanha e França, esses navios, num total de 22, davam apoio à funesta Revolta da Armada, conduzida por um grupo de poderosos militares brasileiros, saudosos das blandícias da monarquia e que exigiam a renúncia do Presidente.

Floriano Peixoto, um caboclo de origem humilde do sertão das Alagoas, depois conhecido como o Marechal de Ferro, respondeu assim à chantagem das grandes potências, como relata J. Natale Netto:

“Os representantes diplomáticos dos três países serão recebidos da maneira como julgo correta em se tratando de estrangeiros dispostos a interferir em assuntos internos do Brasil: à bala! Eu mesmo os aguardarei em meu gabinete. Atenciosamente, Floriano Peixoto”.

Fiz todo este intróito para concluir que a história conturbada da América Latina incluirá mais um 11 de setembro emblemático em seu calendário: o de 2008. Os outros foram o de 1973, que marcou a deposição e morte do presidente constitucional do Chile, Salvador Allende; e o de 2001, com o ataque aéreo às torres gêmeas do World Trade Center, provocando a morte de quase três mil residentes na cidade de Nova York e uma dramática mudança da política americana em relação continente.

Este 11 de setembro de 2008 caiu numa quinta-feira, quando os chilenos e os americanos pranteavam seus mortos. Nesta data, a Bolívia e depois a Venezuela, resolvem expulsar os embaixadores dos Estados Unidos acreditados naqueles países.

Eles são acusados de patrocinar diretamente os distúrbios que convulsionam aqueles modestos países com população de esmagadora maioria indígena e mestiça. Tal medida foi seguida um dia depois por Honduras, minúsculo país da América Central, que decidiu não receber, por enquanto, as credenciais do novo embaixador americano, em vias de instalar-se em Tegucigalpa.

Eu assisti ao vivo ao emocionado pronunciamento a respeito do presidente Hugo Chávez, pela Telesul, o canal multi-estatal de televisão, reunindo Venezuela, Uruguai, Argentina, Bolívia e Cuba. Confesso que, num primeiro momento, achei que Chávez tivesse exagerado e cometido outro de seus destemperos, que tanto têm prejudicado algumas de suas ações políticas de longo alcance. Pior, acreditei que suas verberações iriam cair no vazio, porque desprezadas ou ridicularizadas pelo poder midiático. Seria algo como o episódio do por qué no te callas com o rei Juan Carlos, da Espanha, ocorrido há menos de um ano (12/11/07), durante uma reunião da cúpula Ibero-Americana, em Santiago do Chile.
Estava enganado. Hugo Chávez acabara de empunhar um instantâneo da história, justo aquele instante em que os acontecimentos tomam um rumo diferente do usual. Depois de suportarem mais de cem anos de humilhação e fustigamento dos representantes da grande nação do norte, que vinham agindo como verdadeiros capatazes das fazendas, como julgam ser os países latino-americanos, os senhores embaixadores começavam a ser punidos. E os problemas, logicamente, equacionados.

Leia também:
Phillip Goldberg fala à Newsweek (em inglês)

Moniz Bandeira lança mais luzes

leitefo
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Francisco das Chagas Leite Filho, repórter e analista político, nasceu em Sobral – Ceará, em 1947. Lá fez seus primeiros estudos e começou no jornalismo, através do rádio, aos 14 anos.
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