(Publicado originalmente em Seg, 27 de Abril de 2009 17:25)
Por Reynaldo Domingos Ferreira
As boas atuações de Benício del Toro e de Demián Bichir não livram Che, o Argentino, de Steven Sodeberg, da insipidez narrativa em que até mesmo a utilização do espaço dramático cinematográfico é, por questão ideológica, absurdamente restringida para focalizar fatos controversos sobre a participação da glamurosa figura do médico Ernesto (Che) Guevara na chamada Revolução Cubana. Pois, de fato, além de trabalhar com o roteiro, de Peter Buchman, submetido antes ao crivo dos censores do Centro Che Guevara, que o corrigiram várias vezes, Sodeberg teve de ajustar sua narrativa ao que lhe foi imposto pela idéia de coletivismo – no significado de socialismo estatal, defendido pelos totalitários em oposição à organização coletivista representada pelo estado democrático – de forma a não usar os elementos de linguagem tidos como “psicológicos”.
Assim, limitado na composição de planos – banidos como o foram o close-up, (essencial para Bergman) ou a profundidade de campo (criado por Orson Welles) – Sodeberg, que se diz isento sob o ponto de vista político em relação ao assunto, claudica a todo o tempo ao tentar impor convicção e dinamismo a um roteiro tendencioso e repleto de dados e de fatos enganosos.
Pretendendo suprir essas deficiências, o cineasta, premiado com o Oscar por Traffic, não teve outra opção senão a de dar caráter pseudo-documental às imagens que expõe na tela em preto e branco ou a cores, captadas pela chamada red camera (câmara vermelha), que, sob o manejo de Peter Andrews, aproveitando a luz ambiente, principalmente à noite, produz efeito plástico às vezes muito interessante. O argumento é baseado no livro de memórias de Guevara Pasajes de la Guerra Revolucionaria e numa entrevista concedida por ele à jornalista e ex-atriz de teatro off-Broadway, Lysa Howard, suspeita, por sinal, porque à época estava apaixonada por Fidel Castro, o que explicaria talvez o fato de haver sido ela também a primeira a entrevistar Nikita Krushchev. Apesar disso, entretanto, Sodeberg não teve autorização para filmar em Cuba – onde não existe liberdade de expressão -, tendo as locações sido feitas na Espanha, no México e em Porto Rico. O filme se inicia em Havana, em 1964, quando Guevara (Benicio del Toro), antes de viajar para Nova York a fim de falar na tribuna da ONU , concede entrevista a Howard (Julia Ormond), que lhe indaga, de forma suave, sobre sua participação no movimento revolucionário.
E ele – que, encarregado da prisão La Cabaña, mandara fuzilar, no paredón, mais de quatrocentas pessoas sem julgamento prévio, embora isso o filme não mostre – com voz adocicada, rememora a noite em que conheceu Fidel Castro (Demián Bichir). Isso aconteceu na Cidade do México, em 1955, durante um jantar, na residência de Maria Antonia (Maria Isabel Diaz), participante do Movimento 26 de Julho. Na oportunidade, Guevara perguntara a Castro se tinha ele recursos e homens suficientes para empreender a luta armada a fim de derrubar do poder o ditador Fulgencio Batista, ao que ele respondera, sem constrangimento, que não tinha.
O roteiro é omisso, como é óbvio, no esclarecimento da maneira pela qual Castro teria conseguido os recursos a fim de viajar para Havana, em companhia de Guevara, a bordo do barco Granma, na data de 26 de novembro de 1956. Isso só ficará revelado, conforme se admite, quando se tornarem do conhecimento público as correspondências do escritor Ernest Hemingway, também ex-agente da CIA, infiltrado no meio das esquerdas durante a guerra civil espanhola e que, depois, se mudou para Cuba, tornando-se grande amigo de Castro. Já em pleno campo de batalha, usando armas e munições, adquiridas com os tais recursos para enfrentar o exército de Batista com o objetivo de conquistar Sierra Maestra – havia quem afirmasse que, atingido aquele alvo, se tomava conta de Cuba -, Guevara, sofredor de asma, vai revelando aos poucos o seu ânimo belicoso, a sua face de tirano, um tanto quanto distante da máscara romântica, lírica, que ostentara no filme Diário de Motocicletas, de Walter Salles Jr. É estranho que em certo trecho, o Che, falando aos guerrilheiros, que aos poucos também o repudiavam – tanto assim que Castro o tirara da vanguarda de luta para mandá-lo a um campo de treinamento de voluntários, o que também não fica bem detalhado no filme -, queira envolver Tolstoi na sua pregação marxista e belicosa sobre o que ele denomina de “espírito de luta” de um exército.
Nada é mais impróprio, a meu ver, pois o autor de Guerra e Paz criou uma personagem, o príncipe Andrei, extremamente religioso, que, traumatizado com o morticínio, presenciado por ele no campo de batalha, prega a dação de um beijo na face do inimigo. Ao contrário, portanto, de Guevara que usa a tribuna da ONU, depois de ser chamado por várias vezes, nas ruas de Nova York, de “assassino”, para afirmar aos altos brados: – Fuzilamos e fuzilaremos pessoas porque assim nos impõe o imperialismo americano!… Na verdade, a película mostra apenas o fuzilamento determinado por Guevara, moralista e orador bombástico, de um guerrilheiro que cometera estupro contra a filha de um camponês, mas não faz referência a de inúmeros outros contra “os companheiros” pegos em práticas homossexuais no meio da floresta, como fica claro pela narrativa de Antes do Anoitecer, de Julian Schnabel, Leão de Ouro de Veneza, no ano de 2000, baseado nas memórias do escritor Reinaldo Arenas. Da mesma forma, é enganosa a afirmativa de Guevara aos guerrilheiros de que, tendo sido Cuba o primeiro país a se desvincular dos compromissos com as demais nações do Hemisfério para se alinhar aos soviéticos, manteria sua soberania – Cuba será soberana!… – ele acrescenta, contrariando, por sinal, os seus “companheiros” que, em maio de 1958, antes da tomada de Havana, quando termina o filme, já alardeavam aos jornais do mundo inteiro que “Castro recebe ordens diretas de Moscou”.
São as duas interpretações, de Benicio del Toro e de Demián Bichir, de técnicas diferentes, que merecem a atenção do espectador, pois até mesmo o comentário musical, de Alberto Iglesias não é dos melhores. Del Toro assume a personagem na sua inteireza, exagerando, porém, no seu aspecto doentio, sofredor de asma, a fim de atrair a compaixão do grande público desavisado. E nesse mister, como se há de convir, ele está muito bem, apesar de parecer um advogado de causa perdida. Bichir, ao contrário, ator de teatro experiente, de sucesso tanto no México como nos EUA, tendo observado a linha laudatória do roteiro, tratou de dosar a sua interpretação de Castro de certo distanciamento crítico para figurá-lo como um falastrão como é. E com isso ele atribuiu à personagem caráter cômico de ditador à maneira do de Chaplin, que bem poderia viver a repetir a máxima de Maquiavel: – Os homens são maus, oh Che, se a necessidade não os torna bons!…E não há necessidade de ser bom. Como mau, você conquistou a platéia toda, ávida de sangue e de morte. Agora, por favor, vá morrer na Bolívia e não me importune mais!…
REYNALDO DOMINGOS FERREIRA
FICHA TÉCNICA
CHE, O ARGENTINO
CHE, EL ARGENTINO
Eua/França/Espanha/2008
Duração – 135 minutos
Direção – Steven Sodeberg
Roteiro – Peter Buchman baseado na livro de Ernesto (Che) Guevara Pasajes de la Guerra Revolucionaria
Produção – Laura Bickford, Benicio del Toro
Fotografia – Peter Andrews
Música Original – Alberto Iglesias
Edição –Pablo Zumárraga
Elenco – Benicio del Toro (Che), Demián Bichir (Fidel Castro), Rodrigo Santoro (Raul Castro), Maria Isabel Diaz (Maria Antonia), Jsu Garcia ( Jorge Sotuz), Santiago Cabrera ( Camilo Cienfuegos), Elvira Minguez (Célia Sanchez), Julia Ormond (Lysa Howard), Jorge Perugorria (Joaquin) e outros.