A preocupação com a Líbia tem o seu viés prático, além do puramente político ou ideológico. Daí a nossa insistência com o tema. É que o desfecho vai afetar a vida de cada um, daqui do Brasil ou da Europa ou do Japão. Na França, a gasolina já subiu 1,5 euro com a crise; na América Central, a população não poderia sequer pegar ônibus, não fora a política do presidente Hugo Chávez, da Venezuela, de fornecer petróleo a preços módicos aos países vizinhos; no Brasil, país auto-suficiente em petróleo, mas ainda dependente da importação do querosene para avião, as passagens aéreas deverão ser reajustadas, porque o combustível sofreu três aumentos só este ano, acumulando 16,08%.
Qualquer que seja esse desfecho, haverá consequências: com a reafirmação do regime de Kadhafi, como aspiram os nacionalistas e libertários de todo o mundo – e parece agora delinear-se; ou o seu colapso, como pressionam as grandes potências e os altos negócios, num cenário mais distante, ainda que não improvável de todo. O fato é que o sistema de dominação do mundo, liderado pelos Estados Unidos, com a ajuda da Europa, especialmente a Inglaterra, Alemanha e França, além do aparato financeiro e midiático, sofreu sérias fraturas, a partir das rebeliões da Tunísia, do Egito e a tensão reinante em outros regimes títeres como os da Arábia Saudita, Argélia, Jordânia, Emirados Árabes, Iêmen, etc.
A Líbia, por representar um regime mais polarizado, foi escolhida a dedo para, ao mesmo tempo, desviar a atenção do potencial explosivo desses países do Oriente Médio e dar uma lição àqueles que ousarem desafiar os desígnios daquele sistema. Só que o plano de destronar Kadhafi dá sinais de marchar para o fracasso, porque a população, a exemplo do que aconteceu com os golpes dados pelo mesmo esquema contra Chávez, em 2002 (deposição militar por 48 horas) e 2003 (paro petrolero), foi para as ruas e pegou em armas para combater os setores minoritários que aderiram ao complô. Em jogo estão, como na Venezuela, as conquistas sociais obtidas com a nacionalização do petróleo e que foi revertida em ajuda direta aos necessitados e em reformas educacionais, de saúde e moradias.
Ainda que as potências ocidentais caiam em desespero, optando pela intervenção militar, seja direta por meio de ocupação, ou indireta, pela zona de exclusão, que parece cada dia mais restrita com o avanço das tropas de Kadhafi sobre as áreas rebeladas, a situação não tende a lhes ser favorável. Esta decisão, por suposto, tende a elevar os preços dos combustíveis numa proporção vertiginosa, além de inundar os países europeus com massas incalculáveis de líbios, tunisinianos e egípcios e de outras nacionalidades que ali vivem ou trabalhem, corridos dos horrores da guerra.
Ao mesmo tempo, não está afastado o risco de novas rebeliões irromperem no Egito, cuja população está inquieta com os rumos do regime que substituiu o governo de Hosni Mubarak. Ora, o Egito era até há pouco, com a ajuda maciça de mais de um bilhão de dólares em armamento norte-americano, o maior avalizador da convivência árabe com Israel. Imagina-se então o perigo que não representa uma massa rebelada e faminta para aquele frágil equilíbrio entre os dois países.
Nesse contexto, a perspectiva é de que o antes monolítico sistema de dominação estadunidense-europeu se flexibilize para dar lugar ao fortalecimento ou mesmo à consolidação do sistema multipolar, tendo não mais um único polo ou superpotência, como centro, mas vários polos, como já se configura em termos econômicos, com a China, a Rússia, o Mercosul e o Irã, que teriam poder de igualdade nas questões mundiais em relação aos Estados Unidos, Comunidade Européia e Japão.