Autor de Quem tem medo de Hugo Chávez?
Aguardei alguns dias para escrever sobre o Papa. A idade ensina que é preciso baixar a poeira para formar um primeiro juízo. Com efeito, a designação de Jorge Mario Bergoglio mexeu muito com as emoções. Animal político, desde os tempos de seminário, Bergoglio sempre fechou com a ala conservadora. Era um alto funcionário com muitas conexões na engrenagem do poder da fé. Mas nunca foi o burocrata clássico de se encastelar. Ia para o meio do povo, assistia os pobres. O perfeito profissional daquilo que os americanos chamam de PR (Public Relations).
Ninguém mais adequado para timonear o barco da igreja nas águas revoltas dessas denúncias infindáveis de sexo, corrupção e futricas palacianas. Por isso, foi eleito Papa. Como Obama, o presidente negro e de sorriso bonito, foi o homem apropriado para retocar a imagem dos Estados Unidos, tisnada com a razia do neoliberalismo e os escândalos financeiros. Como era natural, a ascensão de Francisco I, o nome oficial adotado por Bergolglio, se prestou a explorações as mais ensandecidas.
Ele era arcebispo de Buenos Aires, epicentro de uma dura batalha para reverter o projeto nacional do Governo, instaurado em 2003, e retomar o neoliberalismo que o precedeu. O cardeal-arcebispo, hoje Papa, era acérrimo adversário da presidenta Cristina Kirchner, de quem reclamava medidas a favor dos pobres e contra a inflação e a violência. Tratava-se de um incongruência, porque nenhum governo depois de Perón, fez tanto pelos pobres e pela dignificação do país. A taxa de pobreza e miséria absoluta, que atingiu o ápice nos governos de Carlos Menem e Fernando De La Rúa, dois fiéis seguidores das receitas de austeridade do FMI. Pergunta-se, onde estava o padre Jorge Mario quando o colapso de 2001 fez o PIB retroceder a menos 20%, o desemprego beirou os 30%. Estava caladinho, como tampouco botou a boca no trombone contra os abusos da ditadura.
Pecou, no mínimo, por omissão. Pecado que se pode relevar na refrega política, considerando-se a posição oficial e histórica da Igreja. A Igreja Católica, na essência, foi e sempre será assim, a favor das oligarquias e das grandes potências, apesar de sua bandeira em favor dos despossuídos. Nesse particular, o arcebispo não poderia fazer nada. Como é que ele ia se voltar contra Roma, sustentam os pragmáticos? A oposição ao governo, por parte de Bergoglio, entretanto, não era extremada e, ainda que alimentasse a campanha de desestabilização do Clarín e da mídia hegemônica contra a presidenta, uma católica fervorosa, preservava algum nível de diálogo. É verdade que o cardeal de Buenos Aires tentou medir forças com Cristina, quando ameaçou ocupar as ruas de crentes fervorosos, se a presidenta continuasse no apoio ao projeto do casamento gay. O Parlamento aprovou o projeto, com o engajamento militante do governo, o cardeal não teve gente suficiente para encher as ruas e a matéria se tornou lei depois de sancionada, sob ovação nacional, por Cristina Kirchner.
De repente,uma bomba cai sobre o colo da presidenta: Beroglio é eleito Papa. E agora? Interpretando o sentimento majoritário da nação, a presidenta põe de lado as diferenças com o arcebispo e se incorpora ao regozijo generalizado de saudação ao novo Papa. As intrigas explodem e o aparato midiático não perde oportunidade para alardear o enfraquecimento político da presidenta, que agora tinha um adversário poderoso no campo popular, o próprio Papa. À primeira vista e para o observador leigo cujas fontes de informação são essencialmente as grandes cadeias de jornais e televisão, a presidenta tinha sofrido um golpe inapelável.
Era preciso atentar para um detalhe nem sempre visível nessas ocasiões. Cristina, à parte às suas reações apaixonadas, sempre preservou um fino tato. Não são raros os momentos em que ela teve de fazer recuos táticos na busca de preservar os fins a que se propõe. Não se sabe como, mas o fato é que a presidenta é brindada com a primeira audiência papal. Possuídos da ira santa, o Clarín e o La Nación tentaram, no início, desmentir a notícia, mas foram superados pelos fatos. Cristina não só foi recebida pelo Papa Francisco I como também teve seu primeiro almoço de Estado com o ex-arcebispo adversário.
Imagina-se o arreganhar de dentes da mídia internacional, inclusive da brasileira, que chega a ser mais visceral que a argentina. Ainda por cima, o Papa falou à Cristina da necessidade de implementar a Pátria Grande, o grande anseio de Simón Bolívar e de Hugo Chávez de unir as 20 fragmentadas repúblicas da América Latina para, num esforço conjunto, vencer a pobreza e promover o desenvolvimento inclusivo. Mas o Papa falou mesmo de Pátria Grande? “Falou, e não fui eu que puxei o assunto”, garantiu a presidenta num de seus inumeráveis tuítes que vêm permeando ultimamente a internet. Para quê?
Na falta de argumentos, a tática dos acusadores volta-se para desqualificar o interlocutor ou adversário. Falou-se mal do chapéu de Cristina, que, ainda muito bonita nos seus 60 anos completados no último 19 de fevereiro, prima pela elegância no vestir, foi chamada de deslumbrada, jactanciosa, esnobe etc. Partiu-se tamb´m para o despautério. A nossa revista Veja a acusou de “oportunista e ilógica”, por ter pedido a Francisco que intercedesse no contencioso da Argentina para resgatar as Ilhas Malvinas das garras da Inglaterra. Segundo a nossa iracunda semanal, a presidenta “acabou usando a reunião para fazer política” , ao levantar “um assunto que não está na esfera de atuação do papa”.
Ignorância ou simples má fé? Ora, per secula seculorum, os papas não têm feito outra coisa, além da missão pastoral, do que diplomacia, e das mais eficientes. A equipe da Veja estava dormindo ou o seu afã em desmerecer a presidenta ofusca até as percepções mais comezinhas? A própria Cristina Kirchner tinha mencionado, na entrevista que concedeu à imprensa internacional logo depois do encontro papal, a ação decisiva do Papa João Paulo II num contencioso da Argentina com o Chile. Girava em torno do Canal de Beagle, o emaranhado de ilhas, ricas em urânio e petróleo, que separam as águas dos oceanos Atlântico e Pacífico. O conflito quase levou à guerra entre os dois países, em 1978, finalmente resolvido pelo tratado assinado pelos dois países, sob a mediação direta do Papa polonês naquele ano.
No fim, eu entendo este desespero: em outubro haverá eleições para metade da Câmara e um terço do Senado e é possível que Cristina consiga os dois terços do quorum exigido para permitir nova reeleição e promover a reforma judiciária para acabar com o festival de liminares que têm impedido administração de governar em setores-chave da economia, a começar da aplicação da lei de medios. até hoje atravancada pelo poderio do Clarín. A mídia, cuja matriz é uma só e dita suas regras a partir de neus QGs em Londres, Washington, Hong Kong e São Paulo, sabe que a democratização dos meios de comunicação vai forçosamente se estender por países como o Brasil e tantos outros submetidos ao totalitarismo midiático. O processo social, que tem seu curso inexorável, como diria Leonel Brizola, já fez recentemente a Inglaterra, a mãe da mídia, por assim dizer, a baixar o controle social dos meios de comunicação, controle, aliás, objeto de um furibundo editorial e indignada reportagem da mesma Veja (edição impressa desta semana).
O leitor, naturalmente, ficará intrigado com os giros que dá a política, mas é importante que ele conheça os meandros dessa política, para nãose tornar presa ou massa de manobras pelos debates que dominam o noticiário. Para isso, como se viu ao longo desse já longo texto, ele precisa nutrir-se de outras fontes, como o farto material que lhe é ofertado nos blogs, redes sociais e sites independentes, cujas opiniões não são compradas pelo grande capital.