O Chile, pode-se dizer, num “efeito Orloff” ao contrário, é a Argentina de ontem, isto é, de antes da bancarrota de 2001. Privatizou tudo, transformando-se num paraíso das transnacionais e mesmo seu modelo econômico de crescimento com máxima exclusão social, a taxas de 5% ao ano, já começa a fazer água. O sucateamento da educação, da saúde e da previdência, que redundou em fogosos lucros para as corporações e penúria para a população, inclusive de classe média, provou ineficaz, além de desumano. Este país, segundo dados da OCDE (Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico) é um dos mais segregacionistas do mundo.
Neste contexto, a frustração da expectativa de vitória da ex-concertacionista Michelle Bachelet, de 62 anos, no primeiro turno das eleições chilenas de domingo, 17/11/13, não se deveu apenas aos estrattagemas do sistema econômico para forçar o ballotage. Uma dessas manobras mais cavilosas foi a introdução do voto facultativo, que substituiu o voto obrigatório. Apenas 56% do eleitorado sentiram-se motivados a comparecer às urnas, contra mais de 70% na Argentina e no Brasil, por exemplo.
Pesou muito o desencanto com os 20 anos de governos democráticos da Concertación, coalizão de centro-esquerda e social-democrata, que substituiu a ditadura do general Augusto Pinochet, de 1990 a 2010. Neste último ano, a coalizão perdeu para o atual presidente, o empresário mais rico do país, Sebastián Piñera, apoiado pelos pinochetistas. Bachelet ganhou este primeiro turno com 46%, menos 5% do quorum necessário para tornar-se presidente. Isto a obriga a uma segunda eleição, onde vai disputar, em 15 de dezembro, com Evelyn Matthei, que alcançou 25% dos votos.
Num segundo turno, as alianças se rearranjam e muitas partem do zero, neste panorama volátil da política na América Latina. Tal circunstância obriga Bachelet, ainda franco favorita, a desdobrar-se para, principalmente, não perder apoio. Sua adversária é Evelyn Matthei, ex-ministra do Trabalho de Piñera, e filha de um dos membros da sanguinária Junta Militar que derrubou e matou Salvador Allende, em 1973, o general Fernando Matthei, comandante da Aaeronáutica (Força Aérea). Evelyn tem o apoio do atual presidente e dos golpistas de Pinochet.
Não obstante, Michelle Bachelet conta com a simpatia de grande parte da mídia hegemônica e alguns pesos pesados das corporações, situação que, de um lado, a inibe de avançar em propostas mais ousadas de transformação, e, de outro, estimula a desconfiança da militância estudantil. Esta partiu-se ao meio na campanha e pode significar sério entrave à vitória final da oposição.
A verdade é que a Concertación nada fez (ou pôde fazer) para que as famílias chilenas deixassem de continuar se endividando a vida inteira para pagar a escola e a saúde. Também pouco fez para alterar um sistema de aposentadoria instável e incerto, administrado por financeiras internacionais, que tomam grande parte das contribuições dos trabalhadores para aumentar seus lucros e jogar na bolsa.
De tão desacreditada, por convalidar praticamente todo o neoliberalismo xiita da Escola de Chicago, imposto a ferro e fogo por Pinochet, quando quase toda a América Latina elegia presidentes progressistas comprometidos com a inclusão social e a maior intervenção do Estado, a Concertación teve inclusive de mudar de nome para não fazer feio. Passou a se chamar Nova Maioria e conseguiu agregar o Partido Comunista, que havia rejeitado no passado.
Seu amplo leque de apoio, que vai do grande empresariado à parte do movimento estudantil e outras forças sociais, a impede de confrontar receitas ditadas pelo FMI e o Banco Mundial. Mesmo que estes agora reconheçam (para fora, pelo menos) que tenham produzido um monstrengo, eles continuam a impor suas políticas fiscais baseadas na limitação dos salários, gastos e investimentos. Tudo indica que o aperto vai continuar até que tudo exploda, como ocorreu com os argentinos, naquele fatídico 2001, em que o desemprego bateu quase 30%, o país perdeu quase 80% de suas indústrias e a miséria se abateu por 60% daquela antes rica nação.
A Nova maiora tampouco apresentou uma liderança que empolgasse o eleitorado. Optou pela continuidade de Michele Bachelet, última presidente consertacionista (2006-2010), campeã nas pesquisas eleitorais (saiu com 80% de aprovação), mas que se revelou impotente para enfrentar o problema educacional, por exemplo, que veio a estourar no período de Piñera.
Por causa disso, os estudantes, que sacudiram o país com suas manifestações gigantescas pela volta da educação gratuita, se dividiram: Camila Vallejo, o rosto internacionalmente conhecido sdas revoltas de 2011 e membro do PC, optou por Bachelet, depois de ter arrancado desta um compromisso para fazer uma reforma constitucional capaz de soltar as amarras da privatização acelerada na educação, saúde e previdência pública.
Já a presidente da FECH (Federação de Estudantes do Chile), posto antes comandado por Camila, Melissa Sepúlveda, opôs-se frontalmente e denunciou Bachelet como “mais do mesmo”. A Asambleia Coordenadora dos Estudantes Secundários (Aces), cujos dirigentes tomaram o comitê de campanha de Michelle Bachelet, em Santiago, depois da eleição de domingo, protestou que “o movimento estudantil em seu conjunto tem clareza de que, além dos resultados das eleições desse ano, das de 2014 e as futuras, serão de muita luta e de organização”.
Para a entidade, “a antiga Concertación, que se disfarça de Nueva Mayoría; assumiu novas demandas, colocando-as em um programa que sabemos que não será cumprido, deformando-as e convertendo-as em propostas para a classe empresarial e distanciando-as de sua origem: o movimento social”.
Maioria simples no Parlamento – Apesar desses impasses, a Nova Maioria conseguiu uma maioria simples no Parlamento, ganhando 70 das 120 cadeiras na Câmara e 21 das 38 no Senado. Entre os deputados eleitos estão a jovem Camila Vallejo, agora mãe de um recém-nascido, e outras três lideranças estudantis, que agora dividirão os ônus da presidenciável ou, em último caso, se verão no constrangimento retornar aos movimentos de protesto, no caso de não se concretizarem as propostas da coalizão.
Como observa o site notimerica.com, a proposta de reforma do sistema educativo, que busca ampliar a gratuidade e passar à esfera nacional a administração dos colegios que agora estão noâmbito dos municipios, vai necessitar de quatro sétimos dos votos. As mudanças no que propõe para o sistema eleitoral, requerem de três quintos.
A única reforma de Bachelet que precisa de maioria simples é a tributária, que busca financiar as mudanças na educação, para o que alguns analistas crêem que se Bachelet triunfa en dezembro deverá formar um ministério que tenha “mai capacidade de negociação e de aproximação com a direita.
Já se pode antever o angu que essas contradições vão determinar, exigindo de Michalle, se vitoriosa, toda determinação e equilíbrio de sua liderança. A hipótese mais remota do triunfo de Evelyn Matthei, comprometida em manter o atual modelo, não é de todo descartada. Se ocorrer, pode também precipitar a falência do sistema com todas aquelas implicações que os vizinhos platenses bem conhecem.