terça-feira, dezembro 3, 2024
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Livros vencem protestos anti-Cuba em Caracas

Por Saul Leblon (Carta Maior)

Que uma feira de livros inaugurada em Caracas, na semana passada, tenha atraído tanto ou mais  público que um protesto contra Cuba marcado  para o mesmo dia, pode soar estranho ao discernimento de quem se informa apenas pela mídia conservadora.

Inauguração da Filven, por Helena Iono, nossa enviada especial

Mas foi exatamente  o que sucedeu na última sexta-feira, como relata o economista Pedro Silva Barros, que passa a colaborar com Carta Maior diretamente da capital venezuelana.

Seu oportuno texto de estreia (leia aqui) informa não apenas que –pasmem–  existem venezuelanos mais interessados em literatura do que em rejeitar a parceria cubana nas áreas da saúde, educação etc.

O inusitado, quando se toma a emissão conservadora como norma, é mais amplo e profundo.

Pedro Silva Barros relata a existência de uma verdadeira revolução silenciosa nos bastidores da suposta conflagração  irreversível da sociedade venezuelana, sugerida pelos despachos  que o ‘jornalismo isento’ envia ao Brasil.

Erradicado o analfabetismo em 2005, feito atestado pela Unesco e graças à estreita cooperação  entre Havana e Caracas, o governo venezuelano cuida de baratear o acesso à literatura, expandindo  uma rede de livrarias públicas e semeando  editoras pelo país.

Uma delas, informa Pedro Barros, a Editorial El Perro y la Rana, já reúne um catálogo de mais de 4.300 títulos.

A malha de  livrarias públicas  –Librerías del Sur, inclui lojas em todos os estados. A venda de  livros subsidiados em locais de grande circulação pública, como estações do metrô, tornou-se trivial.

Não há notícia de ‘dirigismo autoritário’ na política editorial. A menos que se inclua nessa pauta conservador  a distribuição gratuita de um milhão de exemplares de Don Quixote de La Mancha,  obra-prima da literatura mundial, cujo quarto centenário foi festejado assim pelo então Presidente Chávez.

Essa revolução se entrelaça a outra, a do acesso à educação superior na Venezuela: o país tem cerca de 28 milhões de habitantes e dois milhões de universitários (o Brasil tem sete milhões para uma população de 190 milhões).

Nada disso diminui nem desmente a existência de uma polarização política  nesse momento, extremada  pela radicalização de uma parte da oposição venezuelana, e que já fez 29 vítimas fatais dos dois lados.

O que esses relatos ajudam a entender é por que um governo que teria contra si uma sociedade integralmente dilacerada, como ensina o martelete conservador,  não caiu até agora .

A dificuldade de se obter maior  transparência no noticiário relacionado aos conflitos e disputas vividos naquele país –razão do novo nome incorporado à equipe de colaboradores de Carta Maior– fala diretamente  ao momento brasileiro.
Não se trata de equiparar  a radicalidade , nem os desafios contidos na agenda venezuelana.

Trata-se  de chamar a atenção para o decisivo papel da informação plural  quando  do que mais se necessita é dotar a agenda do desenvolvimento de um razoável grau de coerência, que permita concentrar energias em processos e  prioridades de interesse da maioria da população.

Essa é uma das mais delicadas operações da democracia: assegurar que o embate político gere a força, a legitimidade  e o consentimento necessários à aglutinação das grandes  maiorias requeridas  às transições de ciclo histórico.

O oposto disso é o golpe. A crispação neoudenista. O comportamento  vergonhoso de uma mídia que, à falta de cardápios  defensáveis  dedica-se a denunciar supostos privilégios no do ex-ministro José Dirceu.

Escandaliza-a  a hipótese de que o ex-ministro possa, digamos, ter devorado um Big Mac na Papuda, mas não a sua retenção ilegal em regime fechado, depois do direito assegurado ao semiaberto.

Qual o passo seguinte dessa espiral da exasperação?

Aquilo que o conservadorismo brasileiro não hesitou em acionar há  50 anos.

Quando se viu na iminência de ceder espaço à hegemonia em formação  em torno das reformas de base  propostas por Jango, (como ficou documentado em pesquisas do Ibope, só recentemente divulgadas), golpeou a democracia a  propósito de defendê-la.

É impossível exagerar  a importância  da mídia no processo de desenvolvimento de uma sociedade.

De qualquer sociedade. Mas  sobretudo  daquelas que, a exemplo da Venezuela, Brasil, Argentina, entre outras,   vivem nesse momento a inflamável confluência de uma dupla travessia.

Ela inclui reformar o motor de desenvolvimento em meio  à  habitual  escassez de recursos, agravada   pela reordenação  da economia mundial .

O conjunto  estreita adicionalmente  a margem de manobra do Estado para gerir as dilacerantes contradições  do capitalismo na América Latina.

A alternativa ao golpismo é a repactuação política da agenda do desenvolvimento.

Seu  requisito básico é facultar à sociedade o acesso a dados e análises que lhe permitam assumir o comando do seu destino.

Se nem o florescimento  editorial na Venezuela é informado por aqui, o que esperar das questões mais agudas  –e as graúdas-  que  envolvem as escolhas do desenvolvimento brasileiro?

leitefo
leitefo
Francisco das Chagas Leite Filho, repórter e analista político, nasceu em Sobral – Ceará, em 1947. Lá fez seus primeiros estudos e começou no jornalismo, através do rádio, aos 14 anos.
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