(Publicado originalmente Seg, 15 de Dezembro de 2008 16:04)
Por Aylê-Salassiè (*), de Pequim
(06.08.08) Há 33 mil pés de altitude, o boeing da Air France deixava um rastro de curiosidade pelo que se passava por ali abaixo. Voando a 900 km/hora, abria rapidamente outras frentes de expectativas, já não bastasse as que trazia. O que viria em seguida? Do ponto de vista da história, eu até conhecia mais ou menos o que acontecera por alguns daqueles lugares, mas outros soavam para mim misteriosamente, com nomes estranhos e regiões nebulosas . Já havia sobrevoado o norte da Rússia, quando, há vinte anos, visitara a Índia e o Nepal. Estávamos sobre a Bielorússia.
Ao meu lado, um casal de portugueses – Mário e Émily – da cidade de Santarém, trocavam carícias, que interrompiam vez por outra para falar comigo. A moça era mais discreta, mas o viajado Mário falava de tudo, e sempre com bom humor.
– Ustedes hablan português? , perguntou curioso um atleta olímpico boliviano ajoelhado sobre a poltrona da frente.
– Si, pero lo hablo mejor que ello – e apontei para o Màrio.
– Maisxxx, ele aprendeu comigo, disse o português, caindo na gargalhada.
O vôo para Pequim saíra de Paris às 16 horas aproximadamente, e fluía na mesma direção da rotação da terra. Assim, a noite durou pouco. Mal chegara, e se fora. Deu tempo de dormir, mas não de sonhar. Havíamos passado sobre a Bélgica, a Holanda, a Dinamarca, à Finlàndia – Sverdlonsk, Gorki , Lac de Votkinsk – e agora estávamos sobre a Bielorússia: Karkov, Yekatemburg. O computador de bordo mostrava imagens do mar Negro e do Cáspio mais abaixo, ficando para trás.
Anunciava ainda que na frente iria surgir o grande reservatório de água de Votkinsk , que serve a populações de várias cidades da região, e, quase na mesma região, também o rio Ob descendo os montes Urais em direção ao imenso vale . Suas margens estão salpicadas de pequenas vilas, isolados naquela imensidão de território das estepes russas, cenário de dezenas de eventos da cotidianidade dos povos dos Bálcãs e de guerras fratricidas, escondidas no passado pelo stalinismo.
Aguçado pelo prazer de atravessar, de maneira menos traumática, o meu imaginário, sentia pulsar a inesgotável curiosidade de repórter aumentando a cada instante, a cada região ou cidade que surgiam, apenas como pequenas manchas lá em baixo, cobertas por brumas secas e frias, abrindo sucessivas frentes de ansiedade. O que viria? Na minha mente cartográfica, eu até sabia me localizar , mas desconhecia o que poderia acontecer. Preferi deixar-me surpreender pela imaginação.
Mário e Émily continuavam naquele esfrega,esfrega. Vez por outra Mário deixava escapar , em pequenas gotas, suas preocupações . Idéias confusas cruzavam minha mente, inspirando alguns delírios, inclusive de mau gosto:
– Este avião podia cair por aqui. Assim a gente conheceria a região, disse brincando, em voz alta.
– É, maisxxx tinha de ser bem devagarinho… flutuando, respondeu em gargalhadas.
Lá fora, 58º F (5ºC). Estamos indo agora em direção a Petropavlodsk, Rivieretobal, e entrávamos pelas extensas planíceis da Western Syberian Lowland. Na frente está Omsk, cidade da Rússia capital da província com o mesmo nome, fundada em 1716, e localizada no oeste da Sibéria, que serviu de local de exílio para Dostoievski entre os anos 1849 a 1853.
Abaixo, a tela mostrava ainda Karaganda, Lac Seletytenis, Fleuve Irtych, Rivière Tobal, Novosibirsk, Lac Chamy.
Karanganda, capital do Kasaquistao tem uma história muito triste. Serviu de campo de concentração para os chamados alemães do rio Volga, que chegaram a representar mais de 70 por cento dos seus 450 habitantes. Seus ascendentes haviam sido deportados coletivamente da Siberia para o Kazakhstao por ordem de Stalin, quando Hitler invadiu a Polônia, para trabalhar nas minas de carvão, e permanceram nessa condiçao até os anos cinquenta, internados naqueles campos miseráveis. Quando o regime soviético se abriu boa parte dos habitantes emigrou para a Alemanha, e a população caiu. A região é palco de muitas outras histórias. Tornou-se autônoma recentemente.
Novosibirisk, Ust-Kamnnogorsky, Lac Chamy … quatro horas para a China. Pela primeira vez a tela mostra Beijing no mapa . Percorremos, de Paris para cà , 5.430km. Mais uma hora …, e começa a surgir o rio Ientissei. Entrávamos pelo acidentado território da Mongólia. Apareceu logo Irkutsk e Ulla Bator, aquela das histórias de viagem do Tin Tin . Estamos a 1.650 milhas de Bejing. Surge as montanhas de Sayan, e, do outrro lado, atè Seul, na Corèia, que está a uma hora e meia de avião de Pequim. Não tenho grande curiosidade por Seul, muito ocidentalizada, mas Pyagyong, na Coréia do Norte, sim.
– A Geórgia, palco de uma disputa territorial com a Rússia, e a Bielorússia ficaram lá prá trás. Na frente está Kranogarsk, e nomes muito conhecidos como o delta do rio Salenga, o reservatório de Bratak e o famoso lago Baikal, cujas histórias, em geral infantis, marcam o imaginário do brasileiros, com a tipificaçao dos povos da regiáo. Na minha leitura geográfica, quase me sinto em casa. Na realidade estou atravessando a Mongólia, aquela dos homens baixinhos e truncundos, de olhos bem puxados. Vejo, ao mesmo tempo, um punhado de crianças correndo seminuas em frente de casebres de barro, ao pé da montanha; e, montados, cavaleiros mongóis altivos , dentes escuros e estragados, cobertos por mantas coloridas, chegando eufóricos da caça.
Na realidade, estamos a 33 mil pés de altitude, atravessando áreas como essas, totalmente esquecidas do mundo, mundo que, para nós ocidentais se resume do Atlântico ao Mediterrâneo, do Adriático ao Báltico.O boeing da Air France vai deixando um rastro de curiosidade pelo o que se passa por ali, 33 mil pés abaixo. A velocidade varia, mas a média é mesmo 900 km/hora. E, assim, continua a abrir, sempre rapidamente, outras frentes de expectativa. O que viria? Eu até sabia mais ou menos o que ocorrera por alguns dos lugares por onde passávamos – afinal, sou da área de História – mas outros soavam para mim misteriosamente – não apenas o nome , mas também a região. SAMEN … o que poderia ser,… e acontecer? O que estaria ocorrendo lá em baixo, enquanto eu pareçia meio perdido ali em cima?
De repente:
– Ladies and gentlemen, we are flying over chinese lands…..
Acabaram-se as surpresas. Hu!Hu!Hu! A China está chegando. Parecia tão familiar tomar conhecimento de que já sobrevoava território chinês: Zhangshiaku( 29 minutos), Taiyan, Jinan, Kalgan, Shenyang – a seleção brasileira de futebol vai jogar là – , Trentsin, Chengde, Baoding, o golfo – “Do lado de lá está o Japao” , pensei – …Beijing… Beijing… chegandooooo.
– Ladies and gentlemen, we are arrived on International Beijing Airport….
Em seguida, repetia tudo em mandarim……
Ao meu lado Mário e Émily trocavam as últimas carícias. Meu vazio é imenso, diante de tamanha grandeza: “Mundo, mundo , vasto mundo…”.
Aylê Sallassiê é jornalista e professor universitário radicado em Brasília, tendo sido correspondente do Correio Braziliense, em Londres