O mesmo processo que desestabilizou e fez sucumbir o governo Allende, no Chile, em 1973, como tantos outros no subcontinente – remember Vargas (1954), Perón (1955), Goulart (1964), Zelaya (2009) -, mas foi derrotado na Venezuela de Hugo Chávez, em 2002, tenta alvejar de todo modo a argentina Cristina Kirchner. Praticamente desde que tomou posse, em 10 de dezembro de 2007, a presidente tem sido vítima de uma artilharia pesada da mídia e dos setores conservadores, que já teria ido à lona, não fosse sua capacidade de reagir e dobrar o inimigo.
Cristina, que tem a auxiliá-la o marido Nestor Kirchner, seu antecessor e candidato a sucessor na Casa Rosada, tem enfrentado uma saraivada de golpes baixos daqueles setores, aos quais se juntaram recentemente uma maioria instável do Parlamento e juízes comprometidos com a ditadura e grandes grupos econômicos. Todas esses golpes visam tumultuar e inviabilizar seu governo, como ficou patente no episódio da demissão do presidente do Banco Central, Martin Redrado, em janeiro, que já analisamos neste blog.
Não obstante, o governo, que tem uma política externa tão ou mais ousada que a de Lula, no Brasil, vem apresentando um saldo invejável, a começar pelo índice de crescimento. Neste último mês, alcançou 10%, a despeito da crise econômica e de toda sorte de infortúnios, como a gripe H1N1, que quase fechou o país para os turistas, em fins do ano passado. Se comparada à Inglaterra, que cresceu um irrisório 0,2 no trimestre, o país sulino estaria nadando de braçada na economia.
Cristina ainda salvou os aposentados da bancarrota, em 2007, início da última crise mundial, ao reestatizar os fundos de pensão, que teriam sido dizimados pelos ataques especulativos, como antes tinha ocorrido com os chilenos. Adotou um sistema de bolsas para as famílias pobres (asignación universal por hijo), beneficiando 3.540.000 crianças, cujo resultado foi o incremento de mais de 20 por cento na matrícula escolar, na capital. Também evolucionou o sistema eleitoral, ao adotar uma reforma política das mais modernas, que prevê o sistema de prévias para a escolha dos candidatos, em um só dia no país e baixou, juntamente com o Congresso, uma lei da mídia, que reparte igualmente em três partes – sociedade, governo e iniciativa privada – o monopólio da comunicação – hoje exercido quase que totalmente pelo jornal Clarín.
Como resposta a esses êxitos, a oposição golpista, que não tem liderança e depende em grande parte das ordens dos barões da mídia e do poder econômico, vem ultimamente apelando para a desestabilização, sobretudo no Senado (Câmara de Senadores) e Câmara dos Deputados. Estas quase nada podem produzir, porque a bancada governista, ainda que numericamente minoritária, conta com bons operadores capazes de revidar os golpes.
O último deles foi a decisão do presidente do Senado, que é o vice-presidente da república Julio Cobos, de tornar aprovado, por maioria simples, um projeto reformulando o sistema de distribuição dos montantes arrecadados com o imposto sobre o cheque. A constituição estabelece que o quorum para a sua aprovação é de maioria absoluta – a metade mais um dos membros do Senado. O curioso é que o projeto, mesmo se aprovado pelas duas câmaras, seria necessariamente vetado pela presidente, medida que dificilmente seria rechaçada pela oposição, que está longe de obter os 2/3 de votos necessários para tal. Outro ponto de tensão é a votação de um projeto que altera o instituto da Medida Provisória, que lá se chama Decreto de Necessidade da União (DNU)
A Câmara dos Deputados, que é presidida por um governista, Eduardo Alfredo Fellman, devolveu o projeto. Cobos, o enviou novamente à Câmara, gerando um impasse, pois a peça terá de ser submetida ao plenário da Câmara, a que caberá a palavra final. Como a maioria na Câmara é volátil, porque prevalece quem pressiona mais, prevê-se outra longa e tumultuada batalha.
O curioso é que Júlio Cobos foi eleito vice-presidente da República na chapa de Cristina, de quem era correligionário, ainda que pertencendo a outra partido, a UCR (União Cívica Radical). Mas se tornou seu inimigo figadal e principal instrumento do golpismo na Argentina. Por esta razão, ele está sendo processado pela presidente das Madres de la Plaza Mayo, Hebe Bonafine, que o acusa de “trair à pátria e torpedear o funcionamento das instituições”.
Paralelamente ao processo, Hebe convocou uma manifestação de massa para a próxima quinta-feira, 29/04, na Praça de Mayo, para fazer um julgamento popular do vice-presidente. Juntos com Júlio Cobos, também serão julgados no mesmo ato 16 jornalistas do Clarín e TV TN (Todo Notícias) , também pelo mesmo crime de traição, cooptação pela ditadura, e de emprestarem sua pena para o poder ecnômico.
Panfletos com os nomes e fotos dos jornalistas foram espalhados e pregados nas paredes por toda a Buenos Aires por “mãos anônimas”, numa operação já condenada inclusive pelo governo, que, por seu lado, se queixa de falta de espaço nos grandes meios de comunicação, sobretudo na TV, para responder aos achincalhes a que é submetido diuturnamente pela mídia e seus altos funcionários. Por fim, os filhos adotivos de Ernestina Noble, a dona do Clarín, Marcela e Felipe Noble Herrer, acusados de terem sido sequestrados, quando crianças, de seus pais biológicos assassinados pela ditadura de Vidella, vieram a público, numa conclama pelos jornais e num vídeo gravado para a TN, se queixar de perseguição do governo.
Disseram sentir-se perseguidos, acusando que sua identidade “está sendo manipulada por interesses alheios” :
“Diante de tantas falsidades, queremos contar-lhes nossa verdade. Acaba de nos convencer uma mensagem da Presidente [Cristina Kirchner] quando falava sobre nós, sem citar nomes. A partir deste momento, nos sentimos com medo, angustiados, perseguidos”, sustentaram.
Os dois filhos, hoje com idade 34 anos, são objeto de um processo judicial, movido pelo movimento Abuelas (avós)de Mayo, que buscam mais de 400 crianças filhas de pais desaparecidos, antigos membros da luta armada contra a ditadura (1976-1981). Elas foram tomadas de seus pais pelos oficiais torturadores, que depois as adotaram, venderam, ou as enterraram para não deixar rastro, como demonstraram o movimento Abuelas, que já conseguiram identificar e recuperar 101 delas, na interminável luta a que se entregaram desde a prisão de seus filhos há mais de 30 anos.
Marcela e Felipe Noble seriam duas dessas crianças, mas grupos poderosos ligados ao Clarín tem procrastinado o processo, que se arrasta nos tribunais há mais de sete anos. Não obstante, o juiz que cuidou primeiramente do caso, Roberto Marquevich, afirma hoje: “As crianças foram adotadas nos primeiros anos da ditadura. Tinham certificado de adoção mas não de nascimento. Era algo muito diferente dos outros casos de adoção, do que se pode suspeitar que sejam filhos de desaparecidos, mas a documentação oferece elementos suficientes para avançar na investigação”. Em 17 de dezembro de 2002 Marquevich ordenou a prisão de Ernestina Herrera de Noble por irregularidades nos expedientes de adoção de Felipe y Marcela Noble Herrera. Dois anos depois foi demitido pelo Conselho de Magistratura. A partir daí a causa passou às mãos do juiz Conrado Bergesio.
Para o incauto observador, estes dados levariam ao entendimento de que a Argentina estaria à beira do colapso, mas a leitura por cima das investidas midiáticas, o país nunca esteve melhor, quer em termos de estabilidade política, quer em termos estabilidade econômica, e, diria, mais, de estabilidade social.
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