(Publicado originalmente em Seg, 15 de Dezembro de 2008 15:15)
Por Paulo Timm
Leio com atenção as visões apocalípticas sobre o nosso tempo. Ora anunciam a decadência moral, ora os estertores de um planeta ameaçado pela poluição, ora o “fim da história”. Não são poucos os autores que prenunciam o grande caos . Preocupa-me este estado de espírito.
Grande parte destas visões é severamente ácida e pessimista. E não raro termina se perguntando se o “homem ” é mesmo mau ou se o problema está nas instituições sociais. Um clássico, Rousseau, já dizia: “O homem é bom, a sociedade é que o corrompe ” no que outro clássico, Ortega y Gasset completaria: ” O homem é o homem e suas circunstâncias”. Já Freud e seus seguidores preferem ver a origem do mal no próprio homem que acaba levando a civilização para um inevitável “mal estar”.Todos estes artigos, ou grande parte deles acaba, também, se indagando: “Afinal, quem (?) faz a história , quem são os responsáveis pelas adversidades que nos afligem? Aqui vale lembrar , também, outro clássico, Oscar Wilde. Dizia ele que o homem sofre de três tipos de despotismo: o do espirito, cujo déspota é o papa, o do corpo, cujo déspota é o soberano de turno e o pior deles, o do corpo e da alma juntos, cujo déspota é o próprio povo…Aqui , também, uma explicação do mal pela maldade do próprio homem (coletivo).
Não tenho respostas para todas estas questões, só mais indagações. E , talvez, algumas considerações. Uma delas, se a modernidade foi tão desprezível para a humanidade como explicamos o ter passado de um bilhão de almas no início de 1900 para mais de cinco bilhões no final daquele século? O número de almas sobre um território sempre foi um indicador da eficiência de uma organização social. Não apenas novas famílias foram constituidas, mas muitas delas melhor constituidas.
Outra coisa: Há duzentos anos o pouco mais de meio bilhão de pessoas que habitavam o planeta viviam , com exceção de alguns marajás, muito mal. Os africanos padeciam de regimes escravocratas, os chineses morriam como moscas, os russos só viram o fim do regime de servidão no ano de 1860, os europeus padeciam da miséria ressaltada pelos cronistas da época. E as mulheres? E as crianças, tratadas no regime de verdadeira propriedade paterna, que tudo permitia em nome da tradição? Não existia, rigorosamente, classe média. A vida política? Um terror aristocrático, apesar da Revolução Francesa, da Revolução Americana ou da ” Independência do Brasil”. Não havia direito de organização sindical, de voto livre, secreto e universal, não havia direitos sociais como oito horas de trabalho diário, férias, aposentadoria e dezenas de outras vantagens hoje gozadas pelos trabalhadores , mesmo mais pobres, mesmo de países subdesenvolvidos. O trabalho era penoso, tanto na agricultura, como na indústria nascente , como no lar. Até nas artes era difícil o virtuosismo pois as tintas dos pintores era contaminante, os poetas e literatos dependiam horrorosamente dos favores de poderosos senhores da terra, do governo e do mundo. E os transportes e comunicações? Extremamente lentos, cansativos e baixíssima eficiência. Alguns navios de imigrantes alemães, por exemplo, que chegaram ao Brasil no século XIX levavam meses para cruzar o Atlântico. Metade da população morria no meio do caminho. E que dizer dos odiosos navios negreiros?
É certo que a modernidade cobrou e tem cobrado um preço muito alto em vários sentidos. Houve muita degradação ambiental. Houve guerras feitas em nome de razões discutíveis. Ainda há muita miséria no mundo. E muita violência. Mas será que teria sido melhor pedir aos negros que continuassem escravos nas grandes plantações do sul dos Estados Unidos, de Cuba e do nordeste brasileira. Será que teria sido melhor exigir que as mulheres se dedicassem exclusivamente aos seus maridos e filhos sem qualquer direito a uma vida livre, onde pudessem chegar ao orgasmo sem culpa? Será que teria sido melhor continuar moendo os operários nas engenhocas primitivas que lhe consumiam dezoito horas de trabalho diário junto com dedos e braços esmagados ? Será que teria sido melhor o sistema de ensino elitizado para os filhos de magnatas no eles mesmos padeciam do rigor de regimes disciplinares escabrosos. Será que teria sido melhor adormecer o mundo nos braços dos vitoriosos de Waterlloo que selaram a Santa Aliança em Viena, em 1815?
Honestamente , acho que devemos pensar muito a respeito de todas estas questões. E lembrarmo-nos de que, em todas as épocas, há os pregoeiros do Armagedon, do Apocalipse , do fim do mundo , os quais procuram fazer a roda da história voltar atrás para purificar as nódoas de sua conteporaneidade. São os proclamados fundamentalistas que procuram a verdade não nas coisas em si , tais como aparecem, mas na palavra revelada de algum profeta de ocasião. Agora é a vez dos muçulmanos radicais. Já houve tempo em que a Igreja Romana queimava na fogueira os que não acreditavam que a Terra girasse em torno do Sol…E nem o fundamentalismo secular do “socialismo científico” inaugurado por Marx escapou deste desiderato transformando o justo ideal em ferramenta da opressão. Outros haverá. E se seguirão milhares de jovens ingênuos capazes de se mortificar numa cápsula fatal para fugir ao caos.
Concordo que devemos dar um Basta(!) a muitos dos problemas que hoje nos afligem – e não são poucos. Mas há um historiador inglês que diz uma coisa interessante:_” Para os jovens , todo o passado é passado remoto”. Eu mesmo noto isto quando, em classe, percebo os olhos atônitos de meus alunos quando digo que conheci Getulio Vargas pessoalmente. Pois bem, os jovens de hoje não podem esquecer- e nós, mais velhos temos a obrigação de lhes dizer – os horrores da vida pregressa. A falta de tudo. Tudo! Condições de sobrevivência, sempre condicionadas às intempéries do tempo e dos humores de inescrupulosos governantes. Falta das mais elementares liberadades civis, como o direito de ir e vir, como a propriedade, como o respeito à família, liberdades políticas, como o direito à livre expresão , organização e representação politicas, como os direitos sociais consagrados no Século XX. E se todos estes direitos ainda não se estenderam a todos os cinco ou seis bilhões de almas que povoam o planeta, tratemos de consegui-lo. Pelo menos já dispomos das condições tecnológicas para tanto: dominamos a natureza. Os homens , estes sim, têm sido mais rebeldes. Serão intrínsecamente maus? Ou serão apenas vítimas de suas circunstâncias? Aos “maus” os conservadores propõe o rigor da lei e o reforço da moral. Às “vítimas” das circunsâncias, os mais progressistas contra-propõem a Reforma Política e Social. Em ambos , a firme determinação de dar um caráter rigorosamente prescritivo à sociedade baseado num entendimento comum sobre a “natureza humana”.
Acho que devemos fugir das ortoxias. O mundo jamais se reconstrui do nada. “Tudo flui”, como dizia Heráclito , inclusive a história, a sociedade, e a própria moral.Um recente estudo de Mangabeira Unger, intitulado sugestivamente A PAIXÃO, propõe este caminho alternativo fundado numa visão modernista do homem que habita um contexto. Para êle, sinteticamente, a” a vida da paixão é a escola de liberdade (…) e o que vemos no mundo como um todo, que corresponde ao transe da personalidade, é o espetáculo do ser, o ser como algo que ultrapassa as formas distintas que assume provisoriamente e as represenntações diferenciadas dessas forma que acalentamos temporariamente.” Essa ética do morar – sem pertencer inteiramente ao mundo, muito próxima da proposta do grande filósofo Heidegger, consiste em situar o contexto como uma forma social transitória dotando-o, pela via do ceticismo (subjetivamente competente) frente a ele, de uma crescente capacidade de transformação mediante uma postura de efetiva disponibilidade paciente e esperançosa,traduzida numa grande aliança do ardor com a ternura . Che Guevara já o advertida no slogan Hay que ser duro sin perder la ternura…
Há, certamente , a maldade, cuja origem reside no egoísmo da espécie ou nos desvios de sua psicologia ainda desconhecida. E há, também, o altruísmo, como uma obsessão do amor ao próximo cujo limite, não raro, é a liquidação da individualidade, também capitulada no desvio psicológico. Tanto que há quem diga ( Arthur Koestler, in “Jano”) que a humanidade torturou e matou mais gente por amor (a uma causa, a uma doutrina, a uma religião) do que propriamente por ódio.Mas a grande maioria das pessoas não são nem boas nem más, e, paradoxalmente, as duas coisas ao mesmo tempo, dependendo das circunstâncias. Reconheça-se , ainda, que , exatamente por tais circunstâncias,são social, moral e psicologicamente desiguais e lutam desigualmente pela sobrevivência, à qual se agarram como fazem todos os outros animais .E como estas circunstâncias sociais se deterioram em certos momentos a insegurança psicológica e moral também aumenta e com ela as tensões sociais e políticas.Daí a máxima de que o Direito – e, por conseguinte o Estado-numa sociedade desigual ter que se redistribuir desigualmente pois que se constitui não como mera norma positiva mas como expressão suprema da ética humana.
O mesmo historiador inglês acima citado também não é muito otimista com o futuro. Costuma dizer que no final do século XIX pairava no mundo intelectual um sereno otimismo com relação ao futuro da humanidade. A razão imperava sobre o entendimento de tudo. E deu no que deu: guerras, violência, fome etc etc etc. Hoje, diz ele, ao final do século XX, isto mudou:-” Há um generalizado pessimismo.”” Mas há um furo nesta argumentação, diz ele : – Os intelectuais de hoje podem estar tão enganados quanto seus pares há cem anos…” Portanto, ainda há lugar para a esperança, desde que ela venha acompanhada, claro , da sabedoria que ensina sobre os seus fundamentos no amor e seu destino na solidariedade humanos.
(*) PAULO TIMM, 62, Professor da UnB, Economista,agora em Torres (RS), verão de 2007