Por FC Leite Filho
Para entender a eleição do dia 24 na Argentina, é preciso remontar um pouco ao passado. Como se sabe, além dos 11 de setembro das Torres Gêmeas, em Nova York, em 2001, e do Chile, da queda e morte do presidente Salvador Allende, em 1973, este mês também marca os massacres que determinaram a deposição do general Juan Perón, na Argentina, com um saldo de dois mil mortos, de 16 a 20/09/1955 – um pouco depois do suicídio do presidente Getúlio Vargas, do Brasil, em 24 de agosto de 1954.
Autodenominado Revolução Libertadora, o movimento antiperonista tinha como bandeira a democracia e a moralidade na coisa pública, conspurcada que estaria sendo pelo “ditador” e general Juan Domingo Perón, eleito e reeleito por ampla maioria, em voto direto e secreto. Na verdade, a Revolução Fuziladora, como depois ficou conhecida, revelou-se uma das ditaduras mais sanguinárias e corruptas da história dos povos.
Com o mesmo aparato midiático e seu foco no combate à corrupção, que depôs Getúlio Vargas, em 1954, e João Goulart, em 1964, no Brasil, o golpe argentino fazia parte de uma estratégia comum de dominação dos Estados Unidos e da Inglaterra, que viam seus interesses prejudicados pelas reformas sociais e nacionais, que empreendiam seus governantes. Por causa do mesmo pecado nacionalista ou “populista”, no jargão da CIA, também foram apeados do poder Mohammad Mosaddeq, no Irã, (1953), Jacobo Árbenz, na Guatemala e outros, numa sucessão interminável e sanguinolenta, chegando ao extremo no golpe contra Suharto, da Indonésia, em 1965, com o apoio declarado dos Estados Unidos e que custou a vida de 300 mil pessoas.
Perón, como Vargas no Brasil, realizou uma série de reformas sociais, políticas e econômicas, para a contrariedade das elites dirigentes e seus associados no exterior, sobretudo as multinacionais e o sistema financeiro.
Tal como Getúlio era o “ditador corrupto” no Brasil, embora os fatos depois tenham provado ter sido ele homem honesto e pobre, Perón era o “tirano prófugo” (foragido), na Argentina e, mesmo, internacionalmente. A pecha ludibriou os incautos mas não impediu que a mística peronista sobrevivesse a todos esses anos de opróbrio e hoje oferecesse, na pessoa da atual presidenta Cristina Kirchner, um de seus quadros mais identificados com a soberania, a independência e progresso social.
La revolución fusiladora por elortiba
Mas antes de examinar o governo Kirchner, que hoje oferece uma taxa de desenvolvimento, tanto econômico como social, em níveis chineses, é preciso recordar as realizações do ex-presidente e o ambiente artificialmente criado para desestabilizar e em seguida obliterar uma das experiências de poder popular mais bem sucedidas.
Ao ser eleito presidente, com 56% dos votos, em 1946, Perón estatizou a rede ferroviária, a produção de gás, o Banco Central, a telefonia e empresas de eletricidade. A nova orientação política, com a regulamentação das importações, fez a indústria crescer, enquanto o emprego e os salários se multiplicaram, graças ao aumento do consumo. O salário mínimo passou a ser um dos mais altos do mundo, inclusive desenvolvido. Os trabalhadores, tanto do campo quanto das cidades, conquistaram direitos a aposentadoria, férias remuneradas, seguro médico e cobertura para os acidentes de trabalho. A mulher passou a ter direitos iguais aos dos homens, sobretudo no trabalho, naquele país em que elas não podiam sequer votar.
Paralelamente, o governo industrializou o país com um programa agressivo no campo econômico,
com a política de substituição de importações, através do implemento da indústria leve e investiu fortemente na agricultura, em particular na plantação do trigo, principal produto de exportação. Para compensar a carência de divisas do setor primário, a administração nacionalizou o comércio exterior, criando para isso, o Instituto Argentino de Promoção e Intercâmbio, mecanismo que propiciou recursos para as empresas, com ênfase na área da indústria pesada (siderurgia e geração de energia elétrica).
O programa de educação e de saúde foi outra realização considerável do período. Era todo um arcabouço que permitiu ao país ingressar na área de alta tecnologia, inclusive um projeto de desenvolvimento de energia a partir da fusão nuclear.
La Revolución Fusiladora (Parte 1) por elortiba
O programa nacionalista acabou contrariando interesses arraigados, particularmente no comércio exterior, dominado por empresas inglesas e americanas, que também não aceitaram as estatização, ainda que estas tenham sido compensadas financeiramente. A igreja católica, igualmente insatisfeita com a política de igualdade dos gêneros e por fim da decretação do divórcio, usou todo o seu peso naquele território marcadamente religioso, mobilizando sua imensa estrutura para sabotar o governo, tendo tido papel fundamental na cooptação dos militares, os reponsáveis diretos pelo golpe de 1955.
Massacres – Em 11 de junho daquele ano, dia de corpus christi, a igreja promoveu imensa manifestação popular nas ruas das principais cidades, principalmente na capital, Buenos Aires, para pregar a derrocada do governo. Pouco mais tarde, o Papa Pio XII decretaria a excomunhão de Perón, uma punição altamente temida, na época. Para responder à manifestação católica, os peronistas convocaram uma marcha sobre a Plaza de Mayo, em frente à Casa Rosada, sede do governo.
Os golpistas, então já enquistados nos quartéis, particularmente da Marinha, a arma considerada mais elitista, despacharam 30 aviões para jogar 20 toneladas de bombas sobre a multidão, matando 364 pessoas e ferindo outras 700. Uma das bombas caiu sobre um bonde repleto de estudantes do 1o. grau, dizimando 40 crianças. Era o começo do golpe que iria desembocar nos levantes de 16 a 20 de novembro, matando outras 1.700 pessoas, bombardeando refinarias de petróleo e outros símbolos do nacionalismo, fatos determinantes do afastamento do presidente Juan Perón, que se asilou no Paraguai.
A liderança do movimento acabou nas mãos do contra-almirante Isaac Rojas, considerado o grande arquiteto do golpe. Um de seus motes era de que “barrendero tiene que nascer y morir barrendero” (Varredor tem nascer e morrer varredor), em alusão à política de mobilidade social do general Perón, que resgatou milhões de trabalhadores da pobreza e da marginalização.
Isaac Rojas preferia agir por trás dos panos, mantendo-se como vice-presidente da República, cargo de onde dava as coordenadas, para reforçar a repressão e vigiar eventuais desvios ideológicos. Foi ele quem forçou a queda do primeiro general-presidente, Eduardo Lonardi, que ficou pouco mais de um mês no cargo. Substituiu-o pelo duro Pedro Eugênio Aramburo, o qual, entre outras coisas, ordenou o sequestro do cadáver de Eva Perón, esposa e principal articuladora social de Perón, repatriando-o para a Itália. Rojas era também o presidente da Junta Consultiva Nacional, criada para substituir o Congresso Nacional, que fora dissolvido, juntamente com os governos e assembleias provinciais. Foi esta Junta que restabeleceu a pena de morte, depois de mais de 100 anos de sua extinção no país, a lei marcial e os fuzilamentos.
Cristina Kirchner – Juan Perón permaneceria quase 18 anos no exílio e voltaria ao poder já doente e cansado, em 12 de outubro de 1973, vindo a falecer, em 1 de julhoem 1974, deixando uma doutrina e uma corrente política que se aprofundaria ao longo dos anos, empunhada por várias lideranças, inclusive alguns aventureiros, que se elegeram ou ocuparam posições importantes em seu nome.
A atual presidenta Cristina Fernandes de Kirchner faz parte da linha mais consequente, ao lado de seu falecido marido, Néstor kirchner, que a precedeu no cargo. Néstor, que assumiu em 2004, restaurou a confiança dos argentinos numa administração operosa, que conseguiu resgatar o país dos destroços produzidos pelos seus antecessores, encaminhando-o no rumo do desenvolvimento econômico e social.
Cristina ainda aprofundou o programa de social de Néstor, promovendo, sempre através do Congresso, amplas reformas no campo social e político, das quais emergiu uma reforma eleitoral de grande envergadura e uma lei regulando os meios de comunicação de massa, tornando-os mais acessíveis a todas o espectro da sociedade. Cristina Kirchner é candidata à reeleição no pleito geral marcado para o próximo dia 24 de outubro de 2011.