Por FC Leite Filho
Autor de Quem tem medo de Hugo Chávez?
A reflexão é uma prática pouco usual nestes tempos frenéticos de informações múltiplas que se atropelam. É explicável: as pessoas, particularmente os jovens, que acessam a internet ou vêem televisão, não têm paciência (nem tempo,muitas vezes) para se debruçar sobre as reais motivações desses episódios que nos inquietam. Mas se se atentar para os liames propostos pelo título acima, se verificará que este súbito amor pelo povo, sobretudo por parte de quem sempre desprezou e reprimiu a voz das ruas, não é de graça e pode ter um alto preço a pagar.
Comecemos pelos protestos e depredações no Brasil e na Turquia. Que relação podem ter nossas queixas com os reclamos da distante e muçulmana Turquia? Ou com a chamada Primavera Árabe? Pelo menos 15 mil quilômetros nos separam físicamente do Oriente Médio, se argumentará, com muita propriedade. Isto, porém, se examinamos a coisa superficialmente. Se nos detivermos no alcance global e protagônico da internet, e também da mídia (nunca esquecer dela), e percebermos como esses instrumentos são utilizados pelos sistemas de dominação para manipular e aprisionar consciências, chegaremos a outra conclusão.
É verdade que a explosão popular, tanto lá como aqui, despertou os governantes para problemas que se arrastam há anos e anos. Houve recuos, como o da edificação de um shopping center num bosque do centro de Istambul e como a revogação do reajuste das passagens de ônibus no Brasil, assim como houve avanços: Recept Erdogan enfrentou a desordem e parece ter recuperado o controle do país, enquanto Dilma apelou para o plebiscito como forma de emplacar a reforma política, antigo clamor brasileiro, que os políticos estavam boicotando. Atitudes legítimas de governantes, como Recep TayyipvErdogan e Dilma Rousseff, ambos escolhidos em eleições limpas e democráticas
O problema, com efeito, não está nos manifestantes em si e sim nas forças poderosas que exacerbam sua ação, com o fim, não de atender a seus legítimos reclamos, mas de sequestrar os avanços que a sociedade obteve nos últimos 12 anos de governo popular: diminuição do desemprego a 5%, bolsa família e inclusão de mais de 20 milhões de pessoas. São as mesmas que, em 1964, convocavam as gigantescas “Marchas com Deus pela Liberdade” e depois desferiram o golpe de Estado, tombando o governo democrático, com a instauração de um regime ditatorial que durou 21 anos. Essas mesmas forças que se servem da mídia e agora da internet têm como paradigma o modelo aplicado pelo general Pinochet Chile. Lá, tudo é privatizado, inclusive saúde, aeducação em quase todos os níveis, além das comunicações, transportes e eletricidade. Neste país, que revogou o direito à educação e à saúde gratuitas, 60% da população ganham menos de 500 dólares por mês, uma matrícula escolar sai de 500 a mil dólares mensalmente. As famílias, que ainda arcam com altos custos de eletricidade e alimentação, são obrigadas a contrair empréstimos com juros escorchantes para pagar educação e assistência médica. Esta realidade nunca é apresentada quando a mídia projeta o Chile como o modelo acabado de desenvolvimento democrático.
Voltando à raís dos protestos, examinemos o poder das redes sociais (o da mídia já é bem conhecido) em arregimentar e mobilizar milhões de pessoas, em questão de horas, de minutos ou até de segundos. Foram elas, à frente o Twitter e o Facebook, acompanhadas de uma massiva campanha dos meios de comunicação, que levaram a multidão a defenestrar ditadores e carrascos do povo. Tivemos os casos da Tunísia e do Egito, cujos homens fortes foram impostos pelo poder imperial dos Estados Unidos e da Europa, para cativar combustível barato, quase de graça. Seus ditadores caíram pela pressão das massas, mas seus substitutos, ainda que de inspiração religiosa, não trouxeram mudanças benéficas para a população: os tunisianos e egípcios continuaram tão marginalizados e dominados quanto antes. Por que? Porque o que se pretendia revolta popular foi capturada pelos interesses que os submetem desde há muito a essas potências.
A experiência da mobilização eletrônica ou digital, nesses dois países, depois valeu para as grandes potências ocidentais livrar-se de regimes incômodos (para elas), como a Líbia de Muamar Kadhafi. Kadhafi era tido como ditador, porque realizava um governo popular (outros autocratas da Arábia Saudita, da Jordânia e do Marrocos levam o nome de rei, mas são tão ou mais despóticos). E há aqui uma grande diferença: enquanto os reis Abdallah (saudita), Abdullah II (jordaniano) e Mohamed VI (marroquino) servem-se das riquezas do petróleo para manter o luxo e desperdício de suas cortes, relegando seu povo à miséria e ao analfabetismo, Kadhafi as utilizava para criar universidades, institutos tecnológicos, escola pública e gratuita para todos, erradicação do analfabetismo e bolsa família, pela qual cada cidadão pobre recebia uma mensalidade de 500 dólares.
Sedenta de petróleo e de gás, a Europa, que também, sempre viu em Kadhafi um mau exemplo para os outros povos árabes que ela dominava através desses “reis” e congêneres fantoches, partiu para apropriar-se das riquezas minerais dos líbios, o quinto maior produtor de petróleo. Não hesitou, para isso, em invadir e destroçar o país com aviões e bombas que implodiram a infraestrutura social e econômica. A população líbia retgrocedeu e ficou ainda mais pobre e dependente que seus vizinhos árabes, como aliás era antes de Kadhadi, assassinado e esquartejado, enquanto o petróleo era covardemente açambarcado pela dupla Europa-Estados Unidos.
Como a experiência lhes foi lucrativa e a um custo mínimo de vidas e de material, em 2010, Estados Unidos e Europa mobilizaram o Twitter e o Facebook para alijar o governo da revolução islâmica do Irã, valendo-se da polêmica que eles mesmo criaram em torno da reeleição do presidente Mahmoud Ahmadinejad. O Irã, detentor da segunda maior reserva petrolífera e de um regime forte e popular, por causa da revolução social, econômica e tecnológica que empreendeu, uniu-se na resistência e repeliu a invasão estrangeira, quando esta já ganhava as ruas das principais cidades, assaltadas por distúrbios durante alguns meses. Em seguida, foi a vez da Síria, país nacionalista de posição altamente estratégica no jogo de poder, apesar de não ter muito petróleo. Esta também resiste, heroicamente. Cerca de 80 mil mortos e dois milhões de desabrigados e sua infraestrutura fortemente abalada. A metralhadora giratória midiática e digital voltou-se ato contínuo para a Turquia.
Há dois meses, as mesmas potências, a que a mídia amestrada costuma chamar, pomposa e genericamente, comunidade internacional, desconhecendo o protagonismo da China, Rússia e os governos progressistas da América Latina. Aliás, não se pode esquecer do golpe da grande imprensa contra Hugo Chávez, em 2002, que afastou e prendeu o presidente venezuelano durante 48 horas. Na Turquia, as potências descarregaram outra vez seus canhões eletrônicos. Dirigida por um aliado, integrante da OTAN, o governo de Recep Erdogan, líder muçulmano, que vem ganhando todas as eleições turcas, há 11 anos . A construção estabanada, digamos, daquele shopping center num boxe da praça Taksin, foi o estopim para a revolta, como ocorreu com o aumento das passagens de ônibus no Brasil.
De repente, a Turquia estava tomada por arruaças e incêndios, sempre “em nome da democracia”, também orquestrados pelas redes sociais e o respaldo mortífero dos poderosos meios de comunicação nacionais, sobretudo internacionais, todos sustentados pelas potências. Erdogan recuou do shopping center mas reagiu a mais esta ofensiva imperial. Parece estar ganhando a parada. Pelo menos é o que se infere até aqui dos balanços disponíveis.
Por falar em Recep Erdogan, ele é conhecido no Brasil pelo acordo que tentou fazer com o Irã em torno da política nuclear dos aiatolás. Erdogan chegou a se empolgar com as grandes potências, tendo ajudado na perversa invasão da Síria. Agora, parece ter percebido a traição de que foi vítima. Para sustentar-se, porém, ele terá de se reaproximar do Irã, uma potência militar e econômica regional que tem meios dissuasivos para defendê-lo de uma invasão nunca descartada. Mas para isso, terá de desistir de sua interferência na Síria. É aqui que a sanha demolidora das grandes potências encontrará seu ponto de inflexão, do qual trataremos mais adiante com a abordagem do caso Edward Snoowden.
Enquanto revida o ataque, Erdogan volta-se para o restante do mundo em busca de apoio, inclusive da América Latina. Ele insiste neste apoio, sob o argumento de que os protestos em seu país e no Brasil têm sido orquestrados pelas mesmas forças que querem evitar o seu crescimento e o daqueles países propensos a atuarem com mais soberania. Nas masivas concentrações que convocou para mostrar sua popularidade e diante do Parlamento, ele identificou no fato de os dois países terem pago e, por isso, se livrado da interferência do(Fundo Monetário Internacional) a origem da conspiração para minar o seu crescimento.Exemplificou que o Brasil é alvo das mesmas conspirações que, segundo ele, tentam desestabilizar a Turquia: “O mesmo jogo está sendo jogado agora no Brasil. Os símbolos são os mesmos, os cartazes são os FMI mesmos, Twitter e Facebook são os mesmos, a mídia internacional é a mesma. Eles (os manifestantes) são liderados a partir do mesmo centro”, disse Erdogan.
Nem tudo, porém, está perdido para os governos porgressistas. Eles têm dado passos decisivos na integração latino-americana, assim como no campo dos emergentes, com a criação e desenvolvimento dos BRICSs, o bloco reunindo Brasil, Índia, china e África do Sul. Eles formam um novo bloco de poder que começa a rivalizar-se com os Estados Unidos e a europa. Tal é esse avanço, que países pequenos como Equador, egresso de um passado ditatorial, se dá ao luxo de baixar uma lei de de mídia para democratizar a informação e derrogar o monopólio midiático. Foi também o Equador que concedeu asilo ao diretor do Wikileaks, Julian Assange, quando este se viu acossado pelos europeus, à frente a Inglaterra e a Suécia, que pretendem mandá-lo para os Estados Unidos onde seria possivelmente ser executado pela cadeira elétrica por ter divulgado dois milhões de documentos secretos de Washington, comprovando sua interferência nos assuntos internos de praticamente todos os governos do mundo
Por último, surge Edward Snowden o ex-consultor da CIA, jovem rebelde de 29 anos, que também teve de recorrer ao Equador, depois que denunciou a espionavem conduzida pelos americanos e ingleses nas ligações telefônicas e nos perfis e emails da internet. Veja-se a ironia do episódio. Antes eram os perseguidos políticos latinos que procuravam os países europeus, agora é o Equador, liderado pelo também jovem presidente Raffael Corrêa, que é buscado pelos desterrados europeus e norte-americanos. Como era de esperar, os equatorianos passaram a ser objeto da pressão americana para não conceder asilo a Snowden. Noutros tempos, o país já teria sido invadido pelos yankees, mas hoje há uma força nova que une e fortalece os povos emergentes progressistas, os quais já não são tão permeáveis às chantagens dos grandalhões.
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