(Publicado originalmente em Ter, 30 de Junho de 2009 15:20)
Por FC Leite Filho
José Manuel “Mel” Zelaya Gonzalez, o presidente deposto (ainda?) de Honduras, tem tudo para fazer o típico político reacionário, como historicamente estigmatizado naqueles países da América Central. 56 anos de idade, de família oligarca, é fazendeiro e dono de negócios de madeira. Faz questão de usar chapéu panamá e botas, mesmo portando os ternos mais finos. Seu bigode frondoso, por fim, lhe torna patente uma postura senhorial. As aparências só vão até aí, porque logo se chocam com o ar bonachão, a voz mansa e uma oratória apaixonante, salpicada de citações de poetas e revolucionários, sobretudo latinos, em favor do que chama a participação cidadã.
Foi eleito presidente, em 2005, pelo conservador Partido Liberal, da velha oligarquia, que se reveza no poder com o Partido Nacional, de corte igual, na política hondurenha, desde priscas eras. Aquela mesma política que, de tanto servilismo aos Estados Unidos, apodou o país de “porta-aviões dos yankees”, uma alusão ao apoio incondicional que o país deu às guerras sujas empreendidas pelo irmão forte do norte contra os irmãos raquíticos de cima e debaixo do Equador: a deposição de Jacobo Arbenz, na Guatemala, em 1954; bloqueio de Cuba, 1962; deposição de João Goulart, no Brasil, 1964; derrubada e morte de Salvador Allende, no Chile, 1973; invasão de Granada, 1983; invasão do Panamá, 1989; guerra dos “Contras”, na Nicarágua, 1983-1990; e outros conflitos que redundaram nas ditaduras militares latino-americanas nos anos 80.
De certo, tal histórico dificultou a aproximação com o presidente da Venezuela, Hugo Chávez, a quem Mel Zelaya procurou várias vezes, sem sucesso, nos vários encontros de chefes-de-estado da região. Às suas abordagens, Chávez alegava agenda cheia, outros compromissos, falta de tempo etc. Até que um dia, como conta o próprio Chávez, Zelaya lhe pediu carona no carro oficial para o aeroporto, numa cidade de que o líder bolivariano não se recorda bem, mas que poderia ser Santiago, no Chile.
A partir daí, desenvolveu-se uma amizade, facilitada pelo temperamento extrovertido e o idealismo incorrigível de ambos. A troca de idéias e projetos foi se aprofundando até redundar, de la noche a la mañana, em, nada mais e nada menos do que a adesão de Honduras à Alba, Alternativa Bolivariana para a América. Ora, a Alba é algo que soa até hoje como o cão chupando manga para os conservadores e reacionários de todos os matizes e todos os quadrantes do hemisfério.
Zelaya incorria assim num crime de lesa-pátria, na visão de muitos de seus próprios correligionários, para não falar do azedume da mídia, das classes produtoras e dos militares. Não obstante, a capacidade de negociação do presidente hondurenho e os fortes argumentos que usou para aderir ao organismo alternativo levaram o próprio congresso a chancelar a iniciativa. Afinal, como recompensa, Honduras receberia massivas ajudas nas áreas financeira, técnica e cultural.
A primeira delas era a capitalização do Banco Nacional de Desenvolvimento Agrícola (Banadesa), com 100 milhões de dólares para financiamentos a camponeses, artesãos e pequenos comerciantes, que não têm acesso aos bancos privados. A doação de 100 tratores para apoiar a produção campesina e aumentar a produtividade no campo; a ampliação das brigadas médicas cubanas e educativas para declarar, nos próximos 14 meses, que Honduras é livre de analfabetismo. Finalmente, o país se beneficiaria dos programas de independência energética e de programas de comunicação com potencialização do canal de televisão nacional hondurenho (canal 8) com programas educativos e culturais.
São ajudas preciosas que os tradicionais parceiros de Honduras, a começar dos Estados Unidos, jamais concederiam. A ajuda da Alba, por outro lado, não impunha qualquer limitação ou condicionamento às políticas recessivas do FMI e suas exigências de privatização, juros altos, corte de gastos etc.
A popularidade crescente de Zelaya, sobretudo junto às camadas mais pobres, que respondem por mais de 90% da população, irritaram as elites, que ainda não tinham engolido o aumento substancial no salário-mínimo, que foi para o equivalente a 230 dólares. Tal aumento, somado a outras medidas no campo social e econômico, como o crescimento de 7% nos dois primeiros anos, diminui em 10% a pobreza absoluta, que é de mais de 60% em Honduras: “Eu fiz mais pelos pobres do que todos os presidentes que me anteceram”, disse ele.
Zelaya ainda se defrontava com uma constituição que, como no resto da América Latina, engessa qualquer política pública de investimento e carreia todos os recursos para pagamento de dívida externa. No caso hondurenho, a lei maior coloca como cláusulas pétreas, impossíveis de ser alteradas, as atuais leis econômicas, orçamentárias, tributárias e a regulação dos investimentos sociais. Por causa disso, o presidente decidiu consultar a nação sobre a conveniência de convocar uma assembléia constituinte para fazer uma nova constituição, mais consentânea com as necessidades do país e menos condicionada aos interesses dos grandes grupos econômicos e midiáticos.
A iniciativa foi então considerada como uma tentativa de Mel Zelaya continuar indefinidamente no poder, tendo como modelo o exemplo chavista. Estava aí o pretexto que a crostra reacionária necessitava para se livrar do presidente e mandá-lo para o espaço. Só que o fizeram de maneira tão brutal e primitiva, que o tiro parece agora ter saído pela culatra, voltando-se contra os próprios golpistas, que carecem do reconhecimento internacional para se manter no poder. Manuel Zelaya é o único presidente reconhecido de Honduras e sua restituição foi solicitada inclusive pelo presidente dos Estados Unidos, Barack Obama. E mais do que isso, o povo, surpreendemente organizado, está nas ruas exigindo o retorno do presidente constitucional.
Até lá, Zelaya corre as Américas em pregação, ao mesmo tempo que se prepara para voltar ao país nesta quinta-feira, 2 de julho (Na madrugada, desta quarta, 0107, a OEA solicitou, e Zelaya aquiesceu, um prazo de 72 horas para consumar o retorno), em companhia de outros chefes de Estado, como a presidente da Argentina, Cristina Kirchner, e o de Equador, Rafael Correa. A certa altura, cita um poeta salvadorenho, que dizia: “As leis do mundo sempre as fizeram os poderosos, os ricos e os fortes. Por isso é que há tantos pobres no mundo. No dia em que os pobres fizerem as leis, a pobreza vai terminar”. Ao que ele próprio, José Manuel Zelaya Rosalez, acrescenta, pedindo a Deus: “Dai-me forças para vencer as máfias que governam este país e que não o deixam progredir. Dai-me forças para lutar por um mundo mais justo, onde a mão de Deus e do povo sejam os verdadeiros caminhos de nossa consciência”.