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Moniz Bandeira adverte que o Brasil está em risco

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O politólogo brasileiro Moniz Bandeira, hoje residente na Alemanha, chama novamente a atenção para a cobiça internacional sobre o Brasil, depois que nosso país ingressou no mapa do petróleo, com o programa do Pré-Sal. Pedindo atenção para seu discurso à Universidade Federal da Bahia, que lhe concedeu o título de Doutor Honis Causa, ainda em 2009, o cientista político ressalta agora sobretudo este trecho do discurso, cuja íntegra segue abaixo:

“No entanto, conforme o próprio Rui Barbosa, citando Eduardo Prado, observou, não se toma a sério a lei das nações, senão entre as potências cujas forças se equilibram. Esta lição deve pautar a estratégia de segurança e defesa do Brasil, sobretudo quando os Estados Unidos ampliam e instalam outras bases militares na Colômbia, penetrando a Amazônia, e a IV Frota navega no Atlântico Sul, à margem das enormes jazidas de petróleo descobertas nas camadas pré-sal, em águas profundas, entre o Espírito Santo e Santa Catarina. Essas descobertas, ao longo da costa, inseriram o Brasil no mapa geopolítico do petróleo.
E as ameaças existem, conquanto possam parecer remotas.
“O perigo que representa uma grande potência, tecnologicamente superior, mas com enormes carências, sobretudo de energia, pode ser muito maior, quando ela está a perder a preeminência, e quer mantê-la, do que quando expande seu império. Não duvido de que a intenção do presidente Barack Obama seja, sinceramente, renovar a política internacional dos Estados Unidos e aliviar as tensões geradas pelas iniciativas bélicas, agressivas, unilaterais, do seu antecessor, o presidente George W. Bush.
Contudo, incoercíveis interesses econômicos alimentam poderosas forças políticas, que o presidente Barack Obama não tem como controlar e até podem, eventualmente, eliminá-lo. O Brasil, portanto, deve estar preparado para enfrentar, no mar e em terra, os imensos desafios que se configuram, no século XXI, a “era dos gigantes”, como o embaixador Samuel Pinheiro Guimarães denominou esta era em que os grandes espaços econômicos e geopolíticos serão os principais atores da política internacional. Si vis pacem, para bellum. (Se queres a paz, prepara-te para a guerra). É o passado, a história, que está presente, condicionando o futuro”.

O discurso – Magnífico Reitor da Universidade Federal da Bahia, Professor Naomar Soares de Almeida.
Exmo. Sr. Embaixador Samuel Pinheiro Guimarães, Secretário-Geral de Relações Exteriores, representando nesta solenidade o ministro de Estado, embaixador Celso Amorim.
Exmo. Sr. Embaixador Jerônimo Moscardo, presidente da Fundação Alexandre de Gusmão.
Exmo. Sr. Embaixador Carlos Henrique Cardim, diretor do Instituto de Pesquisa de Relações Internacionais do Ministério de Relações Exteriores.
Exma. Sra. Luciana Mota, da Fundação Cultural Palmares, representando o Sr. Alfredo Manevy, secretário-executivo do Ministério da Cultura, ministro da Cultura em exercício.
Exmo. Sr. Fernando Schmidt, chefe de gabinete do governador do Estado, representante do governador Jacques Wagner.
Ilmo. Sr. Professor João Carlos Salles Pires da Silva, diretor da Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas.
Ilmo. Sr. Professor Ubiratan Castro de Araujo, presidente da Fundação Pedro Calmon.
Senhores professores, senhores membros do Conselho Universitário da UFBA.
Minhas senhoras e meus senhores.

Com muita emoção, aqui agradeço, antes de dizer quaisquer outras palavras, a generosidade dos colegas e amigos que propuseram, apoiaram e impulsionaram a iniciativa para que a Universidade Federal da Bahia me outorgasse o título de Doutor honoris causa. Dirijo-me, particularmente, aos membros da Congregação da Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas, entre os quais os professores Maria Hilda Baqueiro Paraiso, então coordenadora do Programa de Pós-graduação em História, Muniz Ferreira, e Lina Maria Brandão de Aras, então diretora da Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas, Daniel Tourinho Peres, relator do processo, e aos membros da comissão de títulos honoríficos do Conselho Universitário, presidida pelo professor Arthur de Matos Neto, do Departamento de Física. Não posso, evidentemente, citar todos os nomes dos professores aos quais sou muito agradecido. Seria cansativo para os ouvintes. Mas não posso deixar de lembrar o nome de alguns amigos, os professores José Góes de Araújo, Ubiratan de Castro Araújo, João Augusto Lima Rocha e Consuelo Novaes Sampaio, que também se empenharam para que me fosse prestada essa homenagem.
O título de Doutor honoris causa, pela UFBA, reveste-se de especial relevância para mim e muito me reconforta, posto que me é conferido por uma importante universidade do meu Estado natal, onde nasci e me criei, até os 18/19 anos de idade, e onde dei meus primeiros passos na vida acadêmica. Aqui, na Bahia, recebi uma educação humanística, desde o Colégio da Bahia, onde fui aluno de excelentes mestres – meu saudoso amigo Milton Santos, Luiz Henrique Dias Tavares, Acácio Ferreira, Gelásio Farias e Sócrates Marback – até o primeiro ano, na Faculdade de Direito, no Portão da Piedade, onde tive eminentes professores, entre eles Nelson Sampaio e Josafá Marinho, que ensinavam teoria geral do Estado e introdução à ciência do Direito, minhas disciplinas preferidas.
Esta cidade, Salvador, fundada por Tomé de Sousa e cujo primeiro alcaide-mor, nomeado em 1554, foi Diogo Moniz Barreto, meu antepassado, era a Bahia histórica, a Bahia que sempre cultivou a cultura e deu ao Brasil grandes escritores, poetas, romancistas, e também homens de ciência. Na minha adolescência, início da década de 1950, aqui viviam importantes intelectuais, como o historiador Wanderley de Araújo Pinho, o criminalista Edgard Matta, o professor (e epigramista) Lafayete Spínola, o antropólogo Thales de Azevedo, entre outros, assim como artistas do porte de Presciliano Silva, Pancetti, Genaro de Carvalho, Caribé, Carlos Bastos, Sante Scaldaferri, Mário Cravo e Genner Augusto. Outros estavam a emergir. E a vida cultural era intensa. O jornal A Tarde, o mais importante de Salvador, publicava excelente suplemento literário. Havia, no Cabeça, um bar, o Anjo Azul, decorado com murais de Carlos Bastos, e lá intelectuais e artistas se reuniam, conversavam e sorviam “xixi de anjo”, uma bebida alcoólica, produzida pela casa. A Galeria Oxumaré, no Passeio Público, estava sempre a expor obras de artistas baianos. Alexandrina Ramalho, cantora lírica, aposentada, dirigia a Sociedade de Cultura Artística da Bahia, que promovia no Instituto Normal, no Barbalho, concertos de artistas famosos, entre os quais o pianista Arthur Rubinstein, a grande pianista brasileira Madalena Tagliaferro, os cantores Elizabeth Schwartzkopf e Todd Duncan, e o Côro dos Meninos Cantores de Viena. O advogado Walter da Silveira dirigia o Clube de Cinema e exibia películas clássicas e de arte, aos sábados, no Cinema Liceu. E o Instituto Geográfico e Histórico da Bahia convidava escritores de outros Estados, que visitavam a Bahia, para dar conferências no seu auditório. A esses eventos, João Eurico Matta, Paulo Fernando de Moraes Farias, meus dois grandes e diletos amigos de infância, hoje eminentes professores que engrandecem o nome da Bahia, e eu, ainda adolescentes, sempre juntos assistíamos.
Àquela época, com 14/15 anos de idade, comecei a escrever poemas e submetia-os à rigorosa crítica de minha muito querida prima Isa Moniz de Aragão, que foi para mim como uma irmã mais velha. Foi ela que me iniciou no jornalismo, dando-me a tarefa de escrever uma coluna – Letras & Artes – publicada no Diário da Bahia, e incentivou minha vocação para a literatura. Aqui a recordo com saudade. E, uma vez que estou a reviver a juventude, o tempo que morei em Salvador, lembro-me de Arthur de Salles, sentado na Biblioteca Pública, onde me aconselhou a ler Garcia Lorca e os surrealistas franceses, Paul Eluard e Louis Aragon, embora fosse ele consagrado poeta simbolista. Interessei-me assim pela poesia moderna, da qual os expoentes, na Bahia, eram José Luiz de Carvalho Filho, Camilo de Jesus Lima, Sosígenes Costa e Wilson Rocha. Porém, com Elpídio Bastos e João Moniz Barreto de Aragão, este meu parente, aprendi o artesanato do verso, a virtuosidade parnasiana do soneto, o que me valeu até para os próprios versos livres e, inclusive, os textos em prosa, os livros acadêmicos, que escrevi. E, no Rio de Janeiro, completei não só o curso jurídico como também minha formação literária e filosófica, com Edmundo Ferrão Moniz de Aragão, meu tio, meu mestre, a quem estive sempre vinculado, por laços de estreita amizade e afinidade de idéias, durante tantos anos de convívio, até o fim de sua existência, em 1997.
Não obstante haver morado, desde os 20 anos, em várias cidades e países, sempre conservei o amor pela Bahia e suas tradições humanísticas pautaram todas as minhas atividades ao longo de minha vida. A Bahia é muito peculiar, entre os Estados brasileiros. Aqui foi construída a primeira cidade – Salvador – planejada, politicamente, para promover e sustentar o processo de colonização da terra novamente descoberta por Pedro Álvares Cabral e ameaçada pelo assédio dos corsários franceses, que buscavam o pau-brasil a fim de suprir as tinturarias de Flandres. E foi na Bahia que se consolidou a independência do Brasil, com a expulsão das tropas portuguesas comandadas pelo general Inácio Luiz Madeira de Melo, em 2 de julho de 1823. Este dia – 2 de julho de 1823 – é que pode ser considerado, realmente, a data nacional do Brasil, a data em que o grito do Ipiranga se efetivou. Não fosse a vitória da campanha militar, desencadeada a partir do Recôncavo, com o suporte da Casa da Torre de Garcia d’Ávila, o Brasil despedaçar-se-ia em diversas republicas, como ocorreu com a América espanhola. Daí que estranho e lamento – uma vergonha para a Bahia – que o nome do Aeroporto Internacional 2 de julho, em Salvador, tenha sido mudado para Aeroporto Internacional Luiz Eduardo Magalhães, nome de um político, ainda que respeitável. É doloroso ver que assim se apaga a memória histórica da Bahia, que sofreu, em 1933, um dano irreparável, com a demolição da Igreja da Sé, a mais antiga do Brasil, construída em 1553, nos primórdios da colonização. E a memória histórica é a alma do povo, o fundamento de sua identidade, a argamassa de sua cultura, a essência da civilização. O conhecimento do passado – os marcos históricos – dá à comunidade a consciência do que ela é, no presente, e do seu destino, no futuro. Como escreveu o grande poeta T.S. Eliot,

“Time present and time past
Are both perhaps present in time future,
And time future contained in time past”.

Estes versos de T. S. Eliot refletem a concepção de tempo, na mitologia germânica-nórdica, na qual três mulheres – Die Nornen – personificam as deusas (die Schicksalgottheiten), que tecem o destino dos filhos dos homens, em baixo de um freixo, Yggdrasil, conforme aparecem em Völuspá (Predição da Vidente), da Edda Mayor, coletânea de poemas escandinavos escritos por volta dos séculos X e XI. Urd ou Wyrd é a Norn do que foi, de tudo o que passou e está a passar, e condiciona o devenir, o destino. Verðandi ou Verdandi, tornando-se, é a Norn do que é, que representa o presente, o momento de mudança, da transformação; e Skuld é a Norn do que deverá ser, o devenir, a possibilidade. Essas três Nornen não representam, esquematicamente, o passado, o presente e o futuro, como às vezes são interpretadas. O tempo, na mitologia germânica-nórdica, é indivisível. É uno. O passado continua no presente, como poderosa realidade, que permanentemente modifica o futuro, o que está para acontecer. Assim, a determinação do destino do mundo, o fim, ocorreu na sua criação.
Não se pode estudar uma sociedade e um Estado sem conhecer suas origens, sem saber como surgiram, como se desenvolveram, ao longo da história. O médico, quando vai examinar um paciente, logo pergunta pelo seu histórico pessoal, as doenças que teve, e também o histórico familiar, a fim de verificar se seu problema de saúde também decorre de fatores genéticos. Da mesma forma, o meio mais eficaz para a compreensão de um fenômeno político é saber como começou. Os fenômenos políticos, quando se manifestam, resultam de transformações quantitativas e qualitativas de tendências históricas, razão pela qual devem ser estudados e compreendidos em seu encadeamento mediato, em sua condicionalidade essencial e em seu constante devenir. A compreensão do acontecimento, que flui, e do seu desdobramento, no futuro, requer o conhecimento do passado, como substância real do presente, em que possibilidades e contingências se esboçam, suprimindo (aufheben) e, ao mesmo tempo, conservando e elevando a uma síntese superior (aufheben/aufbewahren) as contradições intrínsecas do processus histórico. A ciência política, portanto, necessita da história, com a qual se deve identificar, para alcançar e conhecer a natureza íntima do fenômeno que se pretende estudar.
Uma teoria é necessária, decerto, “para ligar os fatos observados, e poder fazer novas observações”, assim ensinou o filósofo Antônio Ferrão Moniz de Aragão, meu antepassado, na sua obra Elementos de Mathemáticas, publicada em 1858. Mas, do mesmo modo que os acontecimentos históricos não podem ser julgados, segundo valores e critérios do presente, também não se pode aplicar, integralmente, teorias e conceitos elaborados em épocas antigas para analisar e estudar o que ocorre na atualidade. As relações econômicas e sociais do passado não se conservam iguais, modificaram-se, as idéias e instituições modernas são diferentes das que outrora existiram, e as contradições econômicas, as relações sociais e as lutas políticas são inteiramente distintas das que ocorreram no século XIX ou nas primeiras décadas do século XX. Assim, cada época tem de ser avaliada segundo sua própria medida, seus próprios valores, determinados pela evolução das forças produtivas.
O desenvolvimento científico e tecnológico, dos meios de comunicação e das ferramentas eletrônicas, aumentando a produtividade do trabalho e impulsionando ainda mais a internacionalização/globalização da economia, produziu profunda mutação no sistema capitalista mundial, na estrutura social das potências industriais e no caráter da própria classe operária, o qual não mais corresponde ao da classe operária ainda concebido, abstrata e teoricamente, por algumas tendências políticas. No curso da segunda metade do século XX, após a grande guerra de 1939-1945, capitais dos Estados Unidos e das potências industriais da Europa, buscando fatores mais baratos de produção, emigraram, em larga medida, para países da Ásia e da América Latina, bem como para os países do Leste Europeu, depois do colapso da União Soviética e do Bloco Socialista, em 1989-1991. Tais países, com um terço da população mundial, adotaram a economia de mercado. E, sobretudo na China e na Índia, onde encontraram condições de investimentos mais seguras, estáveis e lucrativas, as grandes corporações instalaram suas plantas industriais e passaram a exportar a produção para os mercados das próprias potências econômicas das quais haviam emigrado.
A conseqüência, agravada pela automação da indústria com a crescente utilização de microchips (robôs industriais), foi o aumento do desemprego, que bateu um recorde histórico, atingindo 195,2 milhões de pessoas, em 2006, de acordo com os dados da Organização Internacional do Trabalho (OIT). A existência de poderoso exército industrial de reserva debilitou o poder de negociação dos sindicatos, cuja articulação política, restrita aos limites de seus respectivos Estados nacionais, não acompanhou o desenvolvimento da organização transnacional capitalista, que permite às grandes corporações, com subsidiárias nos novos países industrializados, contar com amplos recursos para resistir às pressões e minimizar os efeitos de qualquer paralisação do trabalho. O deslocamento da produção para os países com níveis salariais mais baixos, as diferenças de condições sociais e políticas, bem como dos níveis de organização obstaculizam, por exemplo, o êxito da coordenação internacional de uma greve, com o objetivo de paralisar, simultaneamente, todas as unidades de produção da mesma empresa espalhadas por diversos países. E o poder dos sindicatos foi ainda mais enfraquecido pela expansão do mercado global de trabalho, com o aparecimento de 1,2 bilhão de novos trabalhadores e de outros milhões dispostos a trabalhar por qualquer salário, para ter um meio de subsistência.
Outrossim, a política imperialista, de competição armada entre as potências industriais, visando a reproduzir as relações de produção e impor seu domínio sobre vastas regiões do planeta, evoluiu, após duas ruinosas guerras mundiais (1914-1918 e 1939-1945), para o ultra-imperialismo, com a formação de uma espécie de cartel dos grandes Estados capitalistas, com a adesão de outros menores. Esse cartel é conduzido pelos Estados Unidos, como potência hegemônica, com alta capacidade estratégica de modelar a vontade das outras potências industriais e conduzir a política internacional, de acordo com seus interesses, exportando suas ameaças para os aliados e levando-os movimentar-se e agir em função do que pensam ser seus autênticos interesses geoestratégicos, quando, na realidade, são interesses estrangeiros. E a expressão militar do cartel é a OTAN, que oferece garantias mútuas de não-agressão e previa a cooperação na área de segurança, bem como ajuda mútua no caso de uma agressão por terceiros países, coletivizando a defesa, para que ela não se torne assunto nacional e sim de interesse do sistema global capitalista.
A dissolução dos regimes comunistas nos países do Leste Europeu, a derrubada do Muro de Berlim e a reunificação da Alemanha, juntamente com a desintegração da União Soviética em quinze outros Estados independentes e a adesão da China à economia de mercado e à globalização assinalaram o começo de nova época histórica e impulsionaram o processo de internacionalização/globalização da economia, acentuando a organização transnacional da produção e a expansão do consumo, em contradição com as formas nacionais de constituição das sociedades e dos Estados. Tais fatores econômicos e sociais produziram, sobretudo nas potências industriais, certo esvaecimento das contradições políticas e ideológicas entre os partidos políticos, cujas iniciativas, no governo, não muito discrepam, na Alemanha, França, Inglaterra, muito menos nos Estados Unidos, onde os Partido Democrata e o Partido Republicano, essencialmente, pouco se diferenciam. Com razão o grande historiador Eric Hobsbawm claramente declarou em entrevista à agência de notícias Telam, da Argentina, que “já não existe esquerda tal como era”, seja social-democrata ou comunista. Ou está fragmentada ou desapareceu. Não há contraste, não há virtualmente oposição. As diferenças consistem somente no matiz dos partidos. Não se pode dizer, portanto, que o regime democrático haja avançado. Pelo contrário, tende a convergir, nos mais diversos países, com os regimes totalitários, na medida em que o Estado de exceção torna-se a norma, tendência esta que se acentuou, sobretudo, após os atentados terroristas contra as torres gêmeas do World Trade Center, nos Estados Unidos, em 11 de setembro de 2001. O papel da sociedade civil torna-se cada vez mais irrelevante. Apesar da oposição, os governos dos Estados Unidos e de alguns países da União Européia deflagraram a guerra e suas tropas continuam a combater no Iraque e no Afeganistão.
O desenvolvimento da tecnologia, mais e mais sofisticada, dá aos governos das potências industriais meios de controlar ainda mais a população, ameaçando as liberdades civis. O V-Chip, veículo de espionagem, que facilita o monitoramento das pessoas, integra os novos sistemas de televisão, computadores, telefones etc.; o PKI Electronic Intelligence permite, por meio de tecnologia digital, monitorar qualquer meio de comunicação eletrônica, como GSM, fax, telefone, internet e outros; os semáforos de trafego contêm câmeras – Security Camera Surveillance Equipment – que acompanham qualquer movimento do individuo; e câmaras de vigilância – CCTV –, instaladas nos mais diversos ambientes, com objetivo de segurança, possibilitam a invasão da privacidade das pessoas; e também os governos intentam armazenar o tráfico de chamadas telefônicas e do uso de internet, a pretexto do combate ao terrorismo.
Esse elevado desenvolvimento tecnológico também favoreceu a concentração de riqueza e de poder e as disparidades sociais aumentaram ainda mais nos países da periferia do sistema capitalista, alimentando o fundamentalismo religioso, em meio à instabilidade política, que se produziu no sistema internacional após o colapso da União Soviética e do Bloco Socialista. Os Estados Unidos tornaram-se o único pólo de poder, tanto econômico quanto político, cultural e tecnológico, com um poderio militar, capaz de intervir, imediata e efetivamente, em qualquer região do mundo. Sua capacidade de destruição é incomparável, não tem paralelo na história. Contudo, diferentemente de outras potências industriais, os Estados Unidos deixaram de ser exportador líquido de capitais e não mais lideram as compras ou o estabelecimento de firmas em outros países. Com enormes déficits comercial e fiscal, bem como na conta corrente do balanço de pagamento, converteram-se em potência devedora, sem condições de pagar sua dívida externa. Os bancos centrais de outros países detêm reservas da ordem de mais de US$ 4 trilhões. Somente a China possui reservas que ultrapassam US$ 2 trilhões e detém ¼ da dívida pública dos Estados Unidos, cujo poderio militar, baseado, sobretudo, nas armas nucleares e nos mísseis de longa distância, mais do que nas tropas terrestres, já não pode garantir-lhes a hegemonia política. Econômica e financeiramente, será difícil sustentar, por muitas décadas, ao longo de todo o século XXI, um império, com cerca 909 bases militares, ostensivas e secretas, instaladas em 46 países e territórios , e duas guerras – Iraque e Afeganistão – cujos custos totais sobem de US$ 2,7 trilhões, em termos estritamente orçamentários, para um montante de US$ 5 trilhões, em termos econômicos, segundo os cálculos de Joseph E. Stiglitz.
O colapso do sistema financeiro internacional, que estava previsto desde 2006 e em 2007 eclodiu, aprofundou-se, na segunda metade de 2008, com a bancarrota dos maiores bancos de investimentos, Lehman Brothers e Merril Lynch, bem como das seguradores American International Group (AIG), da maior dos Estados Unidos e do mundo, Fannie Mae e Freddie Mac, entre outras corporações. Até dezembro de 2008, o governo dos Estados Unidos teve de investir cerca de US$ 5 trilhões para evitar o colapso de todo o sistema financeiro. E já no primeiro semestre de 2009, seu déficit orçamentário superou o montante de US$ 1 trilhão. A previsão é de que alcance a cifra de US$ 1,6 trilhão até o fim do segundo semestre e o Congressional Budget Office estimou que, dentro de dez anos, o déficit orçamentário estará entre US$ 9 trilhões e US$ 10 trilhões. A dívida federal, que corresponde a 33% do PIB dos Estados Unidos, em 2009, poderá saltar para 68%, por volta de 2019, o que representará cerca de 5,1% do PIB calculado para a década, um percentual extremamente alto. Essa tendência não pode continuar indefinidamente. Haverá um momento em que a quantidade há-de gerar uma nova qualidade, provavelmente em meio a uma crise ainda muito mais grave, muito mais profunda, sem precedente na história.
O colapso do sistema financeiro, que entre 2007 e 2009 abalou a economia mundial e compeliu igualmente os governos do Reino Unido, da Alemanha e outros países a aplicar trilhões de dólares em operações de resgate e estatização parcial dos bancos e outras empresas, desfechou forte golpe no fundamentalismo de mercado, similar ao que atingiu o comunismo stalinista com o desmoronamento do Muro de Berlim e dos regimes instalados pela União Soviética, nos países do Leste Europeu. A mudança na arquitetura política internacional, devido ao deslocamento do centro da produção industrial para a Ásia, acelerou-se. E o grupo de Estados ricos do Hemisfério Norte (Estados Unidos, Reino Unido, Alemanha, França, Itália, Japão, Rússia e Canadá), o G-8, que pretendia constituir um sistema global de poder e decidir sobre todas as questões, tanto econômicas quanto políticas, ecológicas e outras, já não mais pode fazê-lo sem a participação de potências emergentes, como a China, Índia e Brasil. Também se torna inevitável o descongelamento do sistema de governança mundial. O Conselho de Segurança da ONU, constituído ao término da Segunda Guerra Mundial, está obsoleto. Com apenas cinco membros permanentes, as grandes potências, com direito a veto, e dez membros não-permanentes, sem direito a veto, não tem representatividade para aplicar sanções contra um país (embargos comerciais, financeiros, de armas etc.) ou determinar uma intervenção militar, com base em um julgamento político sobre situações de guerra ou de ameaça à paz.
O Brasil opõe-se ao congelamento da estrutura do poder mundial, configurado pelo Conselho de Segurança da ONU, e por isto demanda sua reforma, juntamente com a Alemanha, Índia e Japão, importante passo para o estabelecimento de uma ordem internacional multipolar. Como disse o embaixador João Augusto de Araújo Castro, falando aos estagiários da Escola Superior de Guerra, em 1971, “o Brasil está condenado à grandeza”, condenado por sua extensão territorial, por sua massa demográfica, por sua composição étnica, pelo seu ordenamento sócio-econômico e, sobretudo, por sua incontida vontade de desenvolvimento e progresso. O Brasil não é imperialista, não possui bases militares em nenhum outro país, mas tem de enfrentar e vencer todos os fatores externos, superar todos os obstáculos, que possam conter seu poder nacional e impedir que desempenhe um papel de maior relevância, como um global player, sem arrogância nas relações com os países mais fracos e menores e sem humildade e submissão aos desígnios das grandes potências. E daí porque o governo do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, tendo os embaixadores Celso Amorim, como chanceler, e Samuel Pinheiro Guimarães, como secretário-geral de Relações Exteriores, tratou de expandir as fronteiras diplomáticas do Brasil. Entre 2003 e 2008, criou 35 novos postos no exterior e o número de embaixadas subiu para 111, das quais 15 foram abertas ou reabertas na África. Destarte, com um total de 203 representações diplomáticas, o Brasil afirma sua presença em todas as regiões do mundo, inclusive nos países ricos em petróleo e gás – Cazaquistão, Azerbaijão, Catar e Omã e no centro das questões sobre a estabilidade política e a paz no Oriente Médio e na Ásia Central. Um dos principais objetivos é diversificar os parceiros e ampliar os mercados para as suas exportações e investimentos, sobretudo nos setores de mineração, petróleo, agricultura e infra-estrutura.
É necessário, entretanto, que o povo tenha consciência da projeção internacional do Brasil, da dimensão econômica e política, que conquistou, na comunidade das nações, e da importância da política exterior, como instrumento de afirmação do poder nacional, na medida em que preserva sua autonomia e independência. A Fundação Alexandre de Gusmão (FUNAG) e o Instituto de Pesquisa de Relações Internacionais (IPRI), órgãos do Ministério de Relações Exteriores e dirigidos pelos os embaixadoras Jerônimo Moscardo e Carlos Henrique Cardim, respectivamente, estão empenhados na promoção de seminários e publicação de livros, divulgando a relevância da política exterior e o conhecimento sobre diversos países com os quais o Brasil desenvolve significativas relações econômicas, comerciais, políticas e culturais. Entretanto, a massa crítica existente ainda é precária e as universidades podem contribuir para aumentá-la, incentivando a pesquisa e o estudo de outros países, tal como ocorre, por exemplo, nos Estados Unidos, Reino Unido, Alemanha e França.
No Brasil, em diversos Estados da federação, já funcionam cerca de 84 cursos de graduação em relações internacionais, 36% dos quais (a maioria) em São Paulo, 11% no Rio de Janeiro e 4%, na Bahia. Também existem cerca ou um pouco mais de quinze centros de estudos dedicados ao estudo de política internacional e de algumas regiões, sobretudo a África, área em que a Universidade Federal da Bahia foi pioneira. Em setembro de 1959, exatamente há 50 anos, foi fundado, durante a gestão do reitor Edgard Santos, o Centro de Estudos Afro-Orientais (CEAO), sob a direção do professor português Agostinho da Silva. Este foi o primeiro centro de estudos afro-orientais criado em uma universidade brasileira, refletindo os interesses econômicos e estratégicos, determinados pelo desenvolvimento industrial do Brasil, que no final dos anos 1950 já estava necessitando abrir mercados para suas exportações de manufaturas. Um dos membros da primeira geração desse Centro de Estudos Afro-Orientais foi Paulo Fernando de Moraes Farias, que teve de sair da Bahia, quando ocorreu o golpe militar de 1964, e exilou-se na África e, depois, na Inglaterra. Como professor da Universidade de Birmingham, tornou-se um dos mais importantes africanólogos do Reino Unido, e a ele a African Studies Association, dos Estados Unidos, concedeu em 2005 o prêmio Paul Hair, pela sua obra sobre as inscrições árabes medievais e a história da República de Mali, publicada pela Universidade de Oxford e a Academia Britânica.
Outrossim devo aqui evocar a memória de dois grandes vultos da diplomacia brasileira que nasceram na Bahia: José Maria da Silva Paranhos, visconde do Rio Branco, e Rui Barbosa. José Maria da Silva Paranhos, pai do barão do Rio Branco, o patrono da diplomacia brasileira, desempenhou importante papel nos países da Bacia do Prata, onde, como secretário do marquês de Paraná, Honório Hermeto Carneiro Leão, negociou o tratado com o Uruguai, Paraguai e as províncias argentinas – Corrientes e Entre Rios – contra o governo de Buenos Aires, sob a chefia de Juan Manuel de Rosas, que o general Justo José Urquiza, presidente da Confederação Argentina, derrotou, com o suporte do Brasil, na batalha de Caseros, em 1852. O outro foi Rui Barbosa. Nos anos 1890, apoiando Eduardo Prado, ele denunciou a “ilusão americana”, o expansionismo encapado pela Doutrina Monroe, , no uso diplomático, com o objetivo de reservar o continente americano aos empreendimentos futuros dos Estados Unidos, e previu que a Europa solicitaria necessariamente sua anulação, ou modificação, combinando “um modus vivendi adaptável à política imperialista da Casa Branca”. Rui Barbosa, conforme assinalou o chanceler Celso Amorim, “foi um pioneiro da diplomacia multilateral no Brasil” (…) e “inaugurou uma linha de atuação que perdura até hoje: a defesa da igualdade entre os Estados e da democratização das relações internacionais”. “O novo sentido da política externa brasileira” – acentuou o embaixador Carlos Henrique Cardim – “afirma-se com o pensamento e a ação de Rui Barbosa”, ao defender o princípio da igualdade entre os Estados, na Assembléia de Haia”, em 1907. Lá ele combateu firmemente o projeto dos Estados Unidos, propondo a criação de uma Corte Permanente de Arbitragem, que privilegiava as grandes potências, em detrimento dos países mais fracos. E, ao defender a igualdade dos Estados soberanos, proclamou que “la souveraineté est la grande muraille de la patrie”.
Sim, a soberania é a muralha da pátria. No entanto, conforme o próprio Rui Barbosa, citando Eduardo Prado, observou, não se toma a sério a lei das nações, senão entre as potências cujas forças se equilibram. Esta lição deve pautar a estratégia de segurança e defesa do Brasil, sobretudo quando os Estados Unidos ampliam e instalam outras bases militares na Colômbia, penetrando a Amazônia, e a IV Frota navega no Atlântico Sul, à margem das enormes jazidas de petróleo descobertas nas camadas pré-sal, em águas profundas, entre o Espírito Santo e Santa Catarina. Essas descobertas, ao longo da costa, inseriram o Brasil no mapa geopolítico do petróleo. E as ameaças existem, conquanto possam parecer remotas. O perigo que representa uma grande potência, tecnologicamente superior, mas com enormes carências, sobretudo de energia, pode ser muito maior, quando ela está a perder a preeminência, e quer mantê-la, do que quando expande seu império. Não duvido de que a intenção do presidente Barack Obama seja, sinceramente, renovar a política internacional dos Estados Unidos e aliviar as tensões geradas pelas iniciativas bélicas, agressivas, unilaterais, do seu antecessor, o presidente George W. Bush. Contudo, incoercíveis interesses econômicos alimentam poderosas forças políticas, que o presidente Barack Obama não tem como controlar e até podem, eventualmente, eliminá-lo. O Brasil, portanto, deve estar preparado para enfrentar, no mar e em terra, os imensos desafios que se configuram, no século XXI, a “era dos gigantes”, como o embaixador Samuel Pinheiro Guimarães denominou esta era em que os grandes espaços econômicos e geopolíticos serão os principais atores da política internacional. Si vis pacem, para bellum. (Se queres a paz, prepara-te para a guerra). É o passado, a história, que está presente, condicionando o futuro.

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