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Honduras e a guerra civil

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Por FC Leite Filho

Muito se fala em guerra civil em Honduras. As cenas do presidente deposto Manuel Zelaya na fronteira da Nicarágua com aquele país, no esforço pelo reingresso em solo pátrio, fazem crescer esses temores, ainda exagerados, a meu ver. Não obstante, estes fantasmas me transportam à guerra civil espanhola (1936-1939). Lá, também se jogava a fria e implacável política de dominação das grandes potências. De um lado, Estados Unidos, jovem país mas já pujante, a Alemanha hitlerista e a Inglaterra colonial, na defesa dos privilégios da elite econômica; e de outro, a então União Soviética, na busca de implantação do socialismo em algum grande país europeu.
É verdade que hoje, em Honduras, se começa a visualizar que a disputa não se confina à mera troca de poderes na Casa Presidencial de Tegucigalpa, inclusive porque Zelaya está em fim de mandato (termina em janeiro de 2010). Ela envolve um movimento mais amplo e coordenado, que visa conter a experiência autonômica inspirada pela Venezuela. Esta experiência contempla progressos sociais indiscutíveis, como a queda do desemprego, a eliminação do analfabetismo e aumento do salário real da maioria da população. Nela se incluem, além da Venezuela, países pequenos como a Bolívia, Cuba, Equador, Nicarágua e outros da América Central, Honduras incluída, e Caribe, e gigantes, como a Argentina e, de certa forma, o Brasil.

Na Espanha de 1936, como agora, em Honduras, estava em perigo a democracia. No caso específico espanhol, da recém-inaugurada república, vítima de um golpe de estado, que tinha, pela frente, militares truculentos e, por trás, as oligarquias, a monarquia destronada e a igreja. A França, chefiada por um governo de maioria socialista, ainda tentou ajudar a causa republicana, mas foi obrigada a recuar pelas pressões dos ingleses e norteamericanos. Estes se juntaram aos nazistas de Hitler  e fascistas de Mussolini, no apoio militar, material, logístico e político aos golpistas. Órfãos de apoio, os republicanos tiveram de recorrer à Rússia, naquela época União Soviética, fato que deu uma sobrevida de três anos ao regime.

Os russos, no final, também desistiram do apoio crucial, devido à falta de centralização e unidade dos republicanos, e aos receios de eclosão de uma nova guerra mundial, que acabou se materializando, a partir de 1939. A república foi então a pique. Instaurou-se uma das ditaduras mais brutais dos tempos modernos, em nome da democracia e patrocinada pelas ditas grandes democracias ocidentais.

As coincidências com Honduras terminam aí. Ao contrário da desarmonia dos republicanos espanhóis, o que se observa na busca pela soberania e independência da superpotência desses países latinoamericanos  é uma sólida unidade, com articulados propósitos sociais, econômicos e geopolíticos. Pelo menos é o que se infere da rapidez com que eles se desenrascaram das tramoias que lhes foram lançadas, ao longo desse percurso, que já dura 10 anos.

Hugo Chávez, o tenente-coronel presidente da Venezuela, que é, sem dúvida, o mentor e propulsor do movimento, chegou a ser deposto e preso, em 2002. Uma grande corrente popular atirou-se nas ruas e o trouxe de volta ao Palácio Miraflores, em 48 horas. Em 2006, uma doença grave recolhe ao leito e obriga a licenciar-se o lendário líder de Cuba, Fidel Castro, que, ainda na mesa da operação, consegue efetivar uma transição tranquila, sob o comando de seu irmão, o chefe militar Raul Castro.

Na Bolívia, um movimento sedicioso, separatista e racista, baseado na região rica da Media Luna (região que compreende os estados de Santa Cruz, Tarija, Beni e Pando) quase derrocou o presidente índígena Evo Morales, em 2008. Morales enfrentou a conspiração, expulsou o embaixador e outros agentes norteamericanos, inclusive a poderosa agência antidroga dos Estados Unidos, DEA (Drug Enforcement Administration), e encarcerou alguns dos conspiradores, inclusive o governador de Pando. Com isso, se consolidou no poder.

Mais recentemente, em 28 de junho, desatou-se o golpe dos trogloditas em Honduras, que, na madrugada, sacaram o presidente constitucional Manuel Zelaya do palácio e o deportaram, ainda de pijama, ao vizinho país de Costa Rica. Em seu lugar, instalaram um governo títere e virulento, que impôs a censura, as prisões, os assassinatos e o desmantelamento de toda a obra social de Zelaya. Este dobrou o salário-mínimo, diminuiu o preço dos combustíveis, promoveu a democratização do ensino, a reforma educacional, deu assistência médica gratuita aos trabalhadores e deu impulso à diminuição da pobreza, naquele que é o segundo país mais pobre de toda a América Latina.

Os golpistas, provavelmente, não previram resistência, como ocorria no passado recente, quando os golpes de estado logo se tornavam fato consumado. Recorde-se que os generais que derrubaram o presidente João Goulart, no Brasil, foram reconhecidos em menos de 48 horas pelo governo norte-americano. Com efeito, hoje existe um setor ativo da população disposto a não abdicar daqueles avanços e ir até as últimas consequências para reaver seus direitos. Ademais, o presidente destituído demonstrou especial força de vontade e valentia para enfrentar os golpistas, nem que fosse com a própria vida. Primeiramente, denunciou o golpe perante os outros países e organismos internacionais, como a OEA e os próprios Estados Unidos, dos quais recebeu apoio formal, mas não real.

Com o correr dos dias, Mel Zelaya, como é conhecido em seu país, percebeu que as condenações ao golpe, ainda que veementes (a OEA chegou a suspender Honduras como país membro da entidade), não se traduziam em atos concretos de coerção ao regime usurpador chefiado pelo deputado e ex-militar Roberto Micheletti. Os Estados Unidos mantiveram seu embaixador, sua base militar e a ajuda econômica, crucial para Honduras, de onde 70% das exportações dirigem-se para a grande nação do norte.

Em consequência, Zelaya resolveu partir para a ação direta. No início, tentou o retorno ao país por avião e foi impedido. Depois, participou de uma tentativa de solução negociada, inspirada pelos EUA e coordenada pelo presidente da Costa Rica, o prêmio Nobel Oscar Arias. Tal gestão revelou-se, no entanto, mais procrastrinatória do que tendente a levar a uma saída digna para a crise. As negociações foram travadas desde o princípio diante da intransigência do governo de fato de Michelleti de rejeitar a restituição do presidente constitucional.

Agora, Mel Zelaya está desde sexta-feira, dia 24, na fronteira da Nicarágua, país aliado do movimento autonomista e que lhe deu acolhida, tentando romper o cerco militar que o impede de voltar a Honduras e, ao mesmo tempo, incrementar as forças populares que reclamam seu retorno ao poder. Tal gesto provocou a reação negativa dos Estados Unidos, que, em conjunto com outras correntes conservadoras, inclusive de Miguel Insulza, secretário-geral da OEA (a mesma entidade suspendeu o governo usurpador de Honduras). O presidente costarriquenho foi outro que veio a público para taxar de imprudente o gesto de Zelaya.

Washington chegou a convidar o presidente deposto para novo encontro na metrópole. Ele já tinha ido lá duas vezes. Na primeira, nem o presidente Barack Obama nem a secretária de Estado, Hillary Clinton, dignaram-se a recebê-lo. Na segunda,  Zelaya foi convidado por Hillary, que também chamou o golpista Roberto Micheletti. Zelaya foi instado por ela a entender-se com o inimigo na rodada da Costa Rica, que acabou redundando em fracasso. Ressabiado e desconfiado de que lhe preparassem “una nueva trampa”, Mel Zelaya preferiu, como disse, que os EUA lhe mandassem um representante para consultá-lo, ali mesmo na fronteira nicarago-hondurenha, onde pretende acampar, rodeado de simpatizantes.

É evidente que Mel Zelaya não age sozinho. Ele tem o apoio logístico, político e de inteligência da Venezuela, da Nicarágua, de Cuba e de todos os países que constituem a Alba (Alternativa Bolivariana para as Américas). Afinal, ele é um de seus membros. A Alba alega ter de dar uma demonstração de unidade e de força, pois do contrário, poderá ver todos os seus países-membros submetidos ao mesmo tipo de quartelada.

Novamente aqui se verifica uma diferença da debacle da república espanhola da década de 1930. O regime democrático deposto de Honduras não ficou sozinho como aquele. Tem atrás de si o apoio efetivo e determinado dos nove países que compõem a organização, entre eles a Venezuela, grande potência do petróleo, a Cuba revolucionária, a Nicarágua sandinista, a Bolívia do gás e de Evo Morales, o Equador petroleiro de Rafael Correa etc. Além desse respaldo direto, o presidente Zelaya conta com a simpatia declarada dos presidentes da Argentina, do Brasil e do Paraguai.

Nesta altura, um embate que favoreça Zelaya, fortalecendo sua popularidade em Honduras, mesmo que não reassumindo o poder (na verdade ele só teria seis meses no cargo), tende a fortalecer a Alba, e em consequência o movimento de autonomia daqueles países em relação aos norteamericanos. Inevitavelmente, esta hipótese enfraqueceria a influência dos EUA, que caiu muito depois da ascensão de Chávez e da criação da Unasul (União das Nações Sulamericanas). Trata-se de situação inadmissível para os falcões de Washington, a quem se atribui suporte decisivo ao golpe de Honduras. As reações já começam a se delinear, como o anúncio da instalação de quatro bases militares na Colômbia, onde já existe uma unidade militar daquele país e um número ainda não preciso de militares, consultores e, segundo denúncias da Venezuela, de contratistas, eufemismo para designar os mercenários.

Como se verifica, o quadro não indica que a guerra civil seja inevitável, inclusive pelas razões mostradas na comparação com o conflito espanhol, o mais conspícuo da história recente. Sugere, sim, que muita tensão vai ocorrer daqui para a frente naquela área, sobretudo na Venezuela, o quarto maior fornecedor de petróleo para os Estados Unidos e para onde se voltam as cobiças não só norteamericanas, como também das outras potências européias e asiáticas, famélicas que estão de ouro negro.

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