Por FC Leite Filho
Na Espanha de 1936, como agora, em Honduras, estava em perigo a democracia. No caso específico espanhol, da recém-inaugurada república, vítima de um golpe de estado, que tinha, pela frente, militares truculentos e, por trás, as oligarquias, a monarquia destronada e a igreja. A França, chefiada por um governo de maioria socialista, ainda tentou ajudar a causa republicana, mas foi obrigada a recuar pelas pressões dos ingleses e norteamericanos. Estes se juntaram aos nazistas de Hitler e fascistas de Mussolini, no apoio militar, material, logístico e político aos golpistas. Órfãos de apoio, os republicanos tiveram de recorrer à Rússia, naquela época União Soviética, fato que deu uma sobrevida de três anos ao regime.
Os russos, no final, também desistiram do apoio crucial, devido à falta de centralização e unidade dos republicanos, e aos receios de eclosão de uma nova guerra mundial, que acabou se materializando, a partir de 1939. A república foi então a pique. Instaurou-se uma das ditaduras mais brutais dos tempos modernos, em nome da democracia e patrocinada pelas ditas grandes democracias ocidentais.
As coincidências com Honduras terminam aí. Ao contrário da desarmonia dos republicanos espanhóis, o que se observa na busca pela soberania e independência da superpotência desses países latinoamericanos é uma sólida unidade, com articulados propósitos sociais, econômicos e geopolíticos. Pelo menos é o que se infere da rapidez com que eles se desenrascaram das tramoias que lhes foram lançadas, ao longo desse percurso, que já dura 10 anos.
Hugo Chávez, o tenente-coronel presidente da Venezuela, que é, sem dúvida, o mentor e propulsor do movimento, chegou a ser deposto e preso, em 2002. Uma grande corrente popular atirou-se nas ruas e o trouxe de volta ao Palácio Miraflores, em 48 horas. Em 2006, uma doença grave recolhe ao leito e obriga a licenciar-se o lendário líder de Cuba, Fidel Castro, que, ainda na mesa da operação, consegue efetivar uma transição tranquila, sob o comando de seu irmão, o chefe militar Raul Castro.
Na Bolívia, um movimento sedicioso, separatista e racista, baseado na região rica da Media Luna (região que compreende os estados de Santa Cruz, Tarija, Beni e Pando) quase derrocou o presidente índígena Evo Morales, em 2008. Morales enfrentou a conspiração, expulsou o embaixador e outros agentes norteamericanos, inclusive a poderosa agência antidroga dos Estados Unidos, DEA (Drug Enforcement Administration), e encarcerou alguns dos conspiradores, inclusive o governador de Pando. Com isso, se consolidou no poder.
Mais recentemente, em 28 de junho, desatou-se o golpe dos trogloditas em Honduras, que, na madrugada, sacaram o presidente constitucional Manuel Zelaya do palácio e o deportaram, ainda de pijama, ao vizinho país de Costa Rica. Em seu lugar, instalaram um governo títere e virulento, que impôs a censura, as prisões, os assassinatos e o desmantelamento de toda a obra social de Zelaya. Este dobrou o salário-mínimo, diminuiu o preço dos combustíveis, promoveu a democratização do ensino, a reforma educacional, deu assistência médica gratuita aos trabalhadores e deu impulso à diminuição da pobreza, naquele que é o segundo país mais pobre de toda a América Latina.
Os golpistas, provavelmente, não previram resistência, como ocorria no passado recente, quando os golpes de estado logo se tornavam fato consumado. Recorde-se que os generais que derrubaram o presidente João Goulart, no Brasil, foram reconhecidos em menos de 48 horas pelo governo norte-americano. Com efeito, hoje existe um setor ativo da população disposto a não abdicar daqueles avanços e ir até as últimas consequências para reaver seus direitos. Ademais, o presidente destituído demonstrou especial força de vontade e valentia para enfrentar os golpistas, nem que fosse com a própria vida. Primeiramente, denunciou o golpe perante os outros países e organismos internacionais, como a OEA e os próprios Estados Unidos, dos quais recebeu apoio formal, mas não real.
Com o correr dos dias, Mel Zelaya, como é conhecido em seu país, percebeu que as condenações ao golpe, ainda que veementes (a OEA chegou a suspender Honduras como país membro da entidade), não se traduziam em atos concretos de coerção ao regime usurpador chefiado pelo deputado e ex-militar Roberto Micheletti. Os Estados Unidos mantiveram seu embaixador, sua base militar e a ajuda econômica, crucial para Honduras, de onde 70% das exportações dirigem-se para a grande nação do norte.
Em consequência, Zelaya resolveu partir para a ação direta. No início, tentou o retorno ao país por avião e foi impedido. Depois, participou de uma tentativa de solução negociada, inspirada pelos EUA e coordenada pelo presidente da Costa Rica, o prêmio Nobel Oscar Arias. Tal gestão revelou-se, no entanto, mais procrastrinatória do que tendente a levar a uma saída digna para a crise. As negociações foram travadas desde o princípio diante da intransigência do governo de fato de Michelleti de rejeitar a restituição do presidente constitucional.
Agora, Mel Zelaya está desde sexta-feira, dia 24, na fronteira da Nicarágua, país aliado do movimento autonomista e que lhe deu acolhida, tentando romper o cerco militar que o impede de voltar a Honduras e, ao mesmo tempo, incrementar as forças populares que reclamam seu retorno ao poder. Tal gesto provocou a reação negativa dos Estados Unidos, que, em conjunto com outras correntes conservadoras, inclusive de Miguel Insulza, secretário-geral da OEA (a mesma entidade suspendeu o governo usurpador de Honduras). O presidente costarriquenho foi outro que veio a público para taxar de imprudente o gesto de Zelaya.
Washington chegou a convidar o presidente deposto para novo encontro na metrópole. Ele já tinha ido lá duas vezes. Na primeira, nem o presidente Barack Obama nem a secretária de Estado, Hillary Clinton, dignaram-se a recebê-lo. Na segunda, Zelaya foi convidado por Hillary, que também chamou o golpista Roberto Micheletti. Zelaya foi instado por ela a entender-se com o inimigo na rodada da Costa Rica, que acabou redundando em fracasso. Ressabiado e desconfiado de que lhe preparassem “una nueva trampa”, Mel Zelaya preferiu, como disse, que os EUA lhe mandassem um representante para consultá-lo, ali mesmo na fronteira nicarago-hondurenha, onde pretende acampar, rodeado de simpatizantes.
É evidente que Mel Zelaya não age sozinho. Ele tem o apoio logístico, político e de inteligência da Venezuela, da Nicarágua, de Cuba e de todos os países que constituem a Alba (Alternativa Bolivariana para as Américas). Afinal, ele é um de seus membros. A Alba alega ter de dar uma demonstração de unidade e de força, pois do contrário, poderá ver todos os seus países-membros submetidos ao mesmo tipo de quartelada.
Novamente aqui se verifica uma diferença da debacle da república espanhola da década de 1930. O regime democrático deposto de Honduras não ficou sozinho como aquele. Tem atrás de si o apoio efetivo e determinado dos nove países que compõem a organização, entre eles a Venezuela, grande potência do petróleo, a Cuba revolucionária, a Nicarágua sandinista, a Bolívia do gás e de Evo Morales, o Equador petroleiro de Rafael Correa etc. Além desse respaldo direto, o presidente Zelaya conta com a simpatia declarada dos presidentes da Argentina, do Brasil e do Paraguai.
Nesta altura, um embate que favoreça Zelaya, fortalecendo sua popularidade em Honduras, mesmo que não reassumindo o poder (na verdade ele só teria seis meses no cargo), tende a fortalecer a Alba, e em consequência o movimento de autonomia daqueles países em relação aos norteamericanos. Inevitavelmente, esta hipótese enfraqueceria a influência dos EUA, que caiu muito depois da ascensão de Chávez e da criação da Unasul (União das Nações Sulamericanas). Trata-se de situação inadmissível para os falcões de Washington, a quem se atribui suporte decisivo ao golpe de Honduras. As reações já começam a se delinear, como o anúncio da instalação de quatro bases militares na Colômbia, onde já existe uma unidade militar daquele país e um número ainda não preciso de militares, consultores e, segundo denúncias da Venezuela, de contratistas, eufemismo para designar os mercenários.
Como se verifica, o quadro não indica que a guerra civil seja inevitável, inclusive pelas razões mostradas na comparação com o conflito espanhol, o mais conspícuo da história recente. Sugere, sim, que muita tensão vai ocorrer daqui para a frente naquela área, sobretudo na Venezuela, o quarto maior fornecedor de petróleo para os Estados Unidos e para onde se voltam as cobiças não só norteamericanas, como também das outras potências européias e asiáticas, famélicas que estão de ouro negro.