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Argentina: A “pausa” de Cristina Kirchner e o salto à frente

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Por Helena Iono (*)

O processo destes últimos dois meses vividos com grande preocupação do povo argentino pela saúde da presidenta Cristina Kirchner, enfocada pelo típico terrorismo da grande mídia local e internacional, atiçando incertezas sobre a continuidade das transformações sociais e de soberania nacional deste novo período democrático e anti-neoliberal da chamada “Década ganhada” e iniciada por Néstor Kirchner (2003-2013), tem dado exemplo de maior solidez, inesperada para muitos grupos da burguesia multinacional.

Não obstante o silêncio físico e obrigatório da presidenta Cristina por 40 dias (sobretudo pela ausência dos seus contundentes discursos e diálogos à nação, via TV e Rádio Pública, jornais populares como “Página 12” ou “El Argentino”, ou twiters, como costuma fazer sábia e conscientemente, no anúncio e explicação de todas as medidas governamentais), e o resultado preocupante das eleições legislativas de 27 de outubro, o processo não parou e deu sinais de vida nos momentos imediatamente posteriores ao pleito eleitoral , com medidas contundentes como a aprovação pela Corte Suprema da Lei da Mídia (LSCA – Lei de Serviços de Comunicação Audiovisual) retirando definitivamente o poder midiático decenal dos grandes grupos econômicos do “Clarin” e “La Nación”, artífices de golpes de direita e do neo-liberalismo.

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Cristina saúda 30 anos de democracia na Argentina 10/12/13


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As eleições legislativas não refletem a medida exata de todas as forças político-sociais em movimento.

Antes de tudo é preciso avaliar que não houve uma derrota a nível nacional, pois a Frente para a Vitória (FPV) e a esquerda pró-governamental manteve a maioria no Senado e na Câmara. O alerta que surge no campo da esquerda e a importância que dão os opositores à sua vitória na província de Buenos Aires, onde o atual prefeito de Tigre, Sergio Massa (Frente Renovadora), derrotou por 12% a Martín Insaurralde, candidato da FPV, se deve a que a província representa 38% do eleitorado nacional. Isso estimulou o prefeito conservador de Buenos Aires, Mauricio Macri (PRO- Proposta Republicana) a lançar sua candidatura às eleições presidenciais de 2015, sem deixar de já criar controvérsias na frente burguesa. Mas, como sabido, os índices eleitorais são oscilantes, apesar de que numa eleição presidencial poderão entrar tantas variáveis locais. Seguramente, como em todos processos, a afirmação de todas as medidas econômico-sociais de nação devem estar acompanhadas de ampla participação popular, sindical em todos os níveis, de província a municípios. Esse também é um desafio para a Argentina peronista-kirchnerista avançar. É um desafio para as lideranças de esquerda, mas pode-se dizer, que atualmente, ao lado do venezuelano, o povo argentino é dos mais conscientes e organizados da América Latina. A tradição de organização operário-sindical do período Peron-Evita, conta e muito. Não obstante, divisões e alas burocráticas do sindicalismo que romperam com o peronismo, há uma forte organização sindical (incluindo CTA, e frações ainda peronistas de parte da ex-CGT), e movimentos da juventude e de quadros combatentes de operários-estudantes-intelectuais-artistas conformados em vários movimentos: La Câmpora, Peronismo Militante, Kolina, Movimento Evita, Novo Encontro, Descamisados, Corrente Martin Fierro, Corrente Transversal, Batalhão Militante, Los Kumpas, enfim, muitos deles sob a bandeira: “Unidos e Organizados”. Separados organicamente, mas massivamente mobilizados em uma Frente Única política que apoiam substancialmente o governo de Cristina Kirchner.

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Novo ministro da Economia: Axel Kicillof

 

A demonstração de que o processo eleitoral não representa tudo e que a luta de classes continua, está em que medidas importantes avançaram na super-estrutura governamental, imediatamente após as eleições, seguramente com pré-decisão e o dedo levantado da convalescente presidenta.  Já o primeiro sinal de que o estado de saúde do seu governo era ótimo, foi a decisão de estatizar a rede ferroviária de trens “Sarmiento”, diante do terceiro grave acidente, em menos de dois anos nessa linha e o segundo na mesma estação, causando 99 feridos, coincidindo ao período de cirurgia de Cristina. Em 22 de fevereiro de 2012, um trem se chocou no mesmo local matando 51 pessoas e deixando outras 700 feridas. Não sendo suficiente a incriminação por acidente provocado, de maquinistas comprometidos com máfias corporativas e privatizantes, a ação do Estado e a segurança social se fizeram valer. Mas, o processo não parou aí, pois em seguida chegou a estrondosa aprovação pela Corte Suprema da Lei da Mídia.

Aprovação pela Corte Suprema da Lei da Mídia (LSCA – Lei de Serviços de Comunicação Audiovisual)
Após uma longa batalha de 4 anos de debate e pressão dos movimentos sociais, desde que a proposta da LSCA levada em 2004 pelo Executivo e a Coalisão pela Comunicação Democrática e Popular, aprovada em 2009 no Senado com 44 votos contra 24, finalmente a relação de forças pesou no Judiciário, a ponto da lei ser aprovada pela Corte Suprema do poder Judiciário por 6 votos contra 1. A aplicação da LSCA é uma grande vitória contra o poder midiático dos grupos econômicos hegemônicos do Cablevision, onde se inclui o grupo  Clarin que até então detinha 300 licenças de canais radio-televisivos por décadas, conformando um espectro de 90% de gestão privada em todo o país. Há 11 casos de grupos de comunicação que excedem as licenças permitidas pela nova lei. A LSCA exige a imediata distribuição dos canais em 33,3% para o governo, 33,3% para associações sem fins lucrativos (sindicatos, universidades, escolas, indígenas, etc…) e 33,3% para o setor privado. Nenhum grupo pode possuir mais de um canal de TV ou rádio, por cabo ou sinal aberto e deve limitar-se a 35% do território nacional. Enquanto os sindicatos, a juventude, os movimentos sociais, artistas como Victor Heredia, Teresa Parodi, e jornalistas como Victor Hugo Morales, festejaram com os estrondosos tambores de luta, parlamentares de direita como Pino Solanas, apenas eleito, seguindo Elisa Carrió, vociferavam contra a LSCA, como uma “agressão à liberdade de expressão”.  Martin Sabbatella, presidente da AFSCA (Autoridade Federal de Aplicação da Lei), uma espécie de Anatel, reiterou que ao contrário do que alardeiam o Clarin e La Nación de que a lei implicará em redução de emprego, há mais de 300 mil jovens trabalhando na área áudio-visual, através do incentivo a cooperativas, e que ninguém será desempregado. Considerando que mídia é hoje instrumento de poder e de guerra, o acontecimento comunicacional na Argentina é um exemplo contundente a seguir em toda a América Latina e no mundo. Leia com mais detalhes os artigos de FC Leite Filho no http://www.cafenapolitica.com/?p=7622 e http://www.cafenapolitica.com/?p=7715

A revelação do chefe do Estado Maior da Força Aérea sobre documentos secretos da ditadura

Este é outro acontecimento relevante sucesso logo após a aprovação da Lei da Mídia que revela que estão em movimento forças, sob o governo de Cristina Kirchner, que indicam uma decisão de enfrentar os setores oligárquicos e financeiros internacionais e a direita golpista; e o que é sintomático, na área das Forças Armadas até hoje fechada como bloco monolítico, sujeito das atrocidades da ditadura, se expressam diferenças internas, e afloram forças militares de alguma forma ligadas à memória democrática e peronista. A revelação que faz o chefe do Estado Maior da Força Aérea, o brigadeiro Mario Callejo, sobre documentos secretos dos anos 76 a 83, encontrados no sub-solo do Edifício Condor, área central da Força Aérea, atinge altos grupos econômicos comprometidos com a ditadura militar.  Os documentos secretos expõem à luz a estratégia sinistra do chamado “Processo de Reorganização Nacional”: sequestros, assassinatos, demonstrando a natureza cívico-militar do golpe de 1976. Se revela o caso Graiver em que a Junta Militar prendeu a família Graiver, proprietária da empresa “Papel Prensa S.A” e autorizou a transferência de 51% das suas ações aos diário Clarin, La Nación e La Razón.  Hebe de Bonafine, dirigente das Mães de Plaza de Mayo diz ao Ministro da Defesa, Augustín Rossi: “temos uma nova Força Armada”. O processo de julgamento e condenação à ditadura militar argentina, que assassinou 30 mil, tem sido dos mais profundos e vivos no dia a dia do cidadão argentino: reconheceram-se tantos mártires e heróis, criando-se parques e museus da memoria (como na ESMA – Escola Superior de Mecânica da Armada – e em Morón), condenando torturadores, e chegando agora a um ponto necessário: romper a estrutura do exército repressor, isolar a direita para que forças militares nacionalistas a serviço do povo e da soberania nacional entrem em cena, como entraram na Venezuela com Hugo Chávez. A direita já tentou isolar ao general nacionalista, Milani, de funções próxima à Cristina Kirchner, mas não definitivamente. Néstor Kirchner, cuja vida está documentada neste filme de Adrián Caetano, aparece numa ampla reunião com o exército, conclamando à consciência social e à defesa da soberania nacional. Da mesma forma Cristina Kirchner mobilizou soldados para ações cívico-militares de ajuda à população vitimada pelas inundações de 2012 em La Plata. Na Faculdade de Jornalismo de La Plata que serviu de apoio às famílias desabrigadas, recordavam de ações similares na famosa “Operação Dorrego” de 1973, a que se referiu J. Posadas destacando o papel revolucionário dos militares sobretudo na Argentina do coronéis Peron e Dorrego (1827).

Retorno de Cristina e a nomeação de novos ministros

Para finalizar o disparar de novas medidas, durante e depois da enfermidade, Cristina Kirchner mudou e nomeou ministros fundamentais como os da Economia (Axel Kicillof), da Agricultura (Carlos Casamiquela), o chefe da Casa de Governo (Jorge Milton Capitanich, atual governador de Chaco) e o presidente do Banco Nación Central (Carlos Fábrega). Dentre todos, Capitanich que cumpre função central, é dos que promete avanços diante da inoperância de setores privados, no sentido de acelerar reestatizações. Mas, o primeiro de todos eles com quem se reuniu na retomada do trabalho presidencial, foi com Martin Sabatella, del AFSCA para acelerar o ponto estratégico fundamental: a aplicação da Lei da Mídia.
O anúncio de renomeação de ministros particularmente na área econômica e comercial, tendo como figura importante o novo chefe de Gabinete presidencial, Capitanich, figura popular respeitada por sua atuação kirchneriana, vem respaldar a execução do novo Plano Quinquenal. Segundo publicado no jornal “Página 12”, este Plano que medeia de 2014 a 2018 compreenderá investimentos de “680 bilhões de dólares, 4.000 km de gasodutos troncais, 2 novas centrais nucleares, 771 km de autoestradas, 1.000 km de ruas pavimentadas, água e esgoto, modernização da linha ferroviária Sarmiento, satélites de plano especial, 28 mil km de fibra ótica, milhares de moradias do Plano Pro.Cre.Ar”para facilitar créditos para a aquisição de imóveis. Nestes últimos anos houve progressos importantes através da chamada “Inclusão social Educativa”. Foram entregues 3,8 milhões de notebooks às crianças do primeiro e segundo grau; 65 milhões de livros distribuídos gratuitamente nas escolas primárias; 10 mil escolas reformadas com fundos municipais, nacionais e internacionais; tudo isso, junto a 3,3 milhões de pessoas favorecidas por uma espécie de bolsa família, chamada “asignación universal” por filho. Tudo isso, sem contar que a saúde dos trabalhadores e estudantes é respaldada por um plano de saúde público baseado nas chamadas “Obras Sociais”, organizadas por categorias de trabalho, ou área sindical, recuperando a tradição das conquistas peronistas, abaladas pelo período neo-liberal , da era Menen, época na qual até uma praça pública era privatizada. Certamente, não tudo é um mar de rosas. Discrepâncias se fazem sentir em manifestações de professores, sob a bandeira de frentes sindicais de luta contra o atraso de salario, mas essencialmente contra governos municipais ou provinciais que defendem o ensino privado seguindo orientações opostas às nacionais, que tratam de reforçar o ensino público e gratuito.

Nenhuma destas medidas progressistas da década Kirchneriana com intenções de fazer a Argentina avançar em direção a um Estado revolucionário pode prescindir do caminho das estatizações; acelerar este processo, como o acordo atual da YPF de desembolsar 5 bilhões de dólares, após nacionalizar 51% das ações da Repsol, gera um debate. Houve momentos em que o atual ministro da economia, Kiciloff defendeu não pagar pela expropriação. Mas, aparentemente, a tendência atual da YPF de apressar a indenização, responde a evitar maiores pressões internacionais, evitar os riscos das artimanhas do chamados fundos buitres, ávidos a atacar e aumentar o preço para remediar a crise capitalista europeia e mundial; a Pemex mexicana com a qual o governo argentino busca fazer acordos para a exploração da zona petrolífera de “Vaca Magra”  tem 10% das ações nacionalizadas da Repsol. Entre a expropriação da Repsol, e a entrada mexicana em Vaca Magra, pesa mais o fato de que o Estado argentino consolida soberania, assim como certos acordos de hibridez transitória entre governos da América Latina, na área do Mercosul ou Unasul, onde uma Oldebrecht investe em Cuba, Equador ou Venezuela, mas sem impedir um avanço da estrutura econômico-política revolucionária destes países. Há acordos com setores burgueses das quais não pode prescindir mesmo uma Argentina mais industrializada que Venezuela.

Aliás, um dos nortes do plano econômico argentino, neste momento, indica ser buscar financiamento, reduzindo importações, desenvolver o mercado interno, estimular a burguesia nacional (como tem sido a linha venezuelana): importações com critério industrial e não financeiro, substituir importações, gerar exportação e aumentar o emprego. Para isso, estabelecer acordos de preços, incentivar a indústria de alimentos, têxtil, roupas, coro, óculos ópticos e tinturas gráficas, segundo os novos gestores da economia e comércio, Kicillof e Augusto Costa. O objetivo é o auto-abastecimento.

Certamente são indesejáveis os acordos ainda mantidos com a Chevron, empresa contestada pelos movimentos indigenistas, ambientalistas argentinos, pelos danos causados ao Equador e ao Brasil. São contradições e convênios que deverão ser superados por relações de forças internas que se estão gestando com os novos acordos com a China e a Rússia. O Ministro da Planificação, Julio De Vido, está viajando a estes dois países asiáticos para buscar financiamento de 17 bilhões de dólares como parte do Plano Quinquenal: para obras públicas estratégicas, centrais hidroelétricas, diques, aquedutos e uma torre de comunicação. Há um projeto de construção de uma Torre única de comunicação (em Avellaneda), de 360 m de altura (a mais alta da América Latina) com uma plataforma de TV digital terrestre (TDT).

A Argentina atual é um baluarte importante para a integração latino-americana

A Argentina está recuperando as origens históricas do nacionalismo revolucionário de Perón e Evita. E na IV Cúpula das Américas, em Mar del Plata no ano 2005, com Néstor Kirchner, Chávez e Lula, deu-se o empurrão contra a Alca, e se formaram os alicerces de uma América Latina Unida em bases antiimperialistas, da Alba, Unasul e Celac e o Conselho de Defesa da Unasul. A partir daí, mil intercâmbios comerciais, incluindo a expansão do Mercosul com a incorporação da Venezuela e Equador. Todos legados históricos do “comandante”, Hugo Chávez, bem recordado por Lula neste Seminário para o Desenvolvimento e a Integração na América Latina” no Chile.  Disse: “quanta falta nos faz Chávez! …Há que acelerar a integração; a construção do Banco do Sul vai muito devagar!”.

Não há saídas isoladas, nem socialismo num só país. Há sim, determinados centros mais avançados do ponto de vista organizacional, da consciência política e social, como a Venezuela, Argentina, Equador,  Bolívia e Cuba, cujos exemplos devem ser apoiados para que a integração não seja estritamente econômica, de defesa de mercados, mas cultural, científica, social e revolucionária, eliminando as desigualdades e elevando o respeito à dignidade dos povos no rumo do socialismo.

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(*) Helena Iono
Produtora da TV Cidade Livre (DF)
e colaboradora do Jornal Revolução Socialista
30 de Novembro de 2013
www.revolucaosocialista.com

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