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Danúbio Rodrigues fala sobre a integração continental

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(Publicado originalmente em Ter, 16 de Dezembro de 2008 16:03)

O jornalista Danúbio Rodrigues, 65, tem 45 anos de experiência em política internacional, desde suas reportagens e análises no Jornal do Brasil e no Estado de São Paulo à sua experiência de assessor em 11 ministérios e no Palácio do Planalto, durante as gestões dos presidentes José Sarney, Fernando Collor e Itamar Franco. Na entrevista que deu ao jornalista FC Leite Filho, do blog Café na Política, sobre a integração latino-americana, Danúbio, natural do Rio Grande do Norte, se disse convencido de que a Venezuela entrará e fortalecerá o Mercosul. Ele acha que a polêmica provocada pelas diatribes do presidente Hugo Chávez contra os parlamentos do Brasil e do Paraguai serão superadas, porque o que está em jogo é a instituição e não os governantes eventuais. Não obstante, o jornalista considera a revolução boliviana uma experiência saudável e necessária para a América Latina e para os países emergentes, embora considere que Chávez careça de uma diplomacia mais eficiente. Danúbio Rodrigues ainda falou da crise energética, que hoje submete quase todo o continente, à exceção da Venezuela, que nada em petróleo e gás, só será resolvida depois que nós e nossos vizinhos resolvam adotar um projeto comum, levando em consideração as potencialidades de cada um. E tal projeto poderia muito bem ser encaminhado por um Mercosul reforçado com a Venezuela e a Colômbia. Sem isso, diz ele, não haverá solução, e sim aprofundamento da crise e suas implicações desastrosas na vida das pessoas.

P – Como você encara a política externa do momento, considerada por uns como de independência e outros de caráter esquerdizante, mas que, a meu ver, parece uma retomada do velho projeto brasileiro e latino de promover o sonho de integração-sulamericana. Tal postura de governo implica muita pressão e contrapressão, sobretudo das grandes potências. E, isto me faz remontar a Jânio Quadros, que ensaiou uma ação firme nesta direção, mas que teve de renunciar, um dia depois que condecorou Che Guevara, e de João Goulart, derrubado por um golpe militar, agora assumidamente patrocinado pelos Estados Unidos, em 1964, por ter, entre outras coisas, seguido a política externa de Jânio.

R – Você falou em Jânio Quadros e eu me lembrei que, ao chegar ao poder, em 1961,ele encontra uma política diplomática voltada apenas para os interesses de Portugal. O Brasil, nessa época, era governado pelo presidente Juscelino Kubitscheck. Não tenho nada contra o JK, Brasília etc. Só que os interesses brasileiros dessa época, principalmente de uma indústria nascente, moderna, queriam outros mercados. E o Brasil votou, por exemplo, sempre e sempre, contra a descolonização, o que é um vexame absoluto até hoje, uma mácula, uma nódoa da nossa diplomacia. Jânio Quadros chegou de uma forma curiosa ao poder. Seu adversário, o marechal (Henrique Teixeira) Lott (apoiado pelas esquerdas) era conservador, chamado de reacionário, ainda por cima militar, mais velho que Jânio. E Jânio ganhou com o apoio do que se chamava antigamente de grandes trustes, apoio dos americanos, do Ocidente e contra o comunismo. Mas, ao chegar ao poder, Jânio Quadros virou completamente a nossa política externa. Este é um pequeno exemplo de como a política externa, a política diplomática, as relações internacionais, elas são um fato absolutamente político. No caso, por exemplo, da condecoração de Che Guevara, não é porque o Che era cubano ou porque Jânio fosse favorável ao socialismo. Nada disso. Hoje está mais ou menos claro que Jânio apenas queria, por pressão do Vaticano, que Fidel Castro e sua revolução liberassem mais a questão religiosa interna. Ora, a Igreja sempre esteve contra o comunismo. Mas no caso de Jânio você associa uma futura expansão da nossa indústria e do nosso mercado com outros problemas pragmáticos. Jânio Quadros também compreendeu que o seu lado, o lado pró-Ocidente, não estava, no caso brasileiro, nos dando a atenção que nós merecíamos. E ele partiu para essa política externa que a direita depois considerou que fosse uma chantagem… Esse tipo de argumento, hoje em dia, não tem o menor valor. O fato concreto é que, a partir daí você teve uma mobilização nacional das chamadas elites – elites de todos os matizes, de direita, conservadora, de esquerda, cada qual a seu modo – querendo um pouco de espaço internacional.

P – Era uma nova realidade…

R – Uma coisa curiosa é que a Revolução de 30, com Getúlio Vargas, tinha mais ou menos o seguinte pensamento: o Brasil é um país grande, territorialmente, e ninguém vai nos atacar. Somos donos da América Latina. Era, na visão de hoje, uma posição francamente fantasiosa. Mas era uma posição correta de uma revolução que chegava ali, onde inclusive houve grandes transformações, a começar pelo voto das mulheres. Então era uma revolução que deveria também enfocar a nossa questão externa. Essa política externa chamada independente foi prosseguida pelo presidente João Goulart (que sucedeu a Jânio). Goulart, apesar das grandes concessões que fez para assumir a presidência (com a renúncia abrupta de Jânio) abraçou a orientação independente de nossa diplomacia. Tal orientação remanesceu, de alguma maneira, mesmo depois do golpe militar de 1964 (que derrubou Goulart). É verdade que, no primeiro período do golpe, liderado pelo general Castelo Branco, nós tivemos um retorno de engajamento total com os Estados Unidos. Mas a nossa potência, o nosso país, as nossas forças vivas, queriam voltar a vender, ou seja, queriam espaço internacional e, neste ponto, houve um aspecto muito interessante, que foi a política do presidente Geisel (também general). O presidente Geisel tentou fazer um projeto nacional, conservador, por sinal, e que chegou a confrontar, por exemplo, os Estados Unidos. Eu, pessoalmente, estive em delegações oficiais, quatro vezes, na então Alemanha Ocidental e ainda fui a um encontro com o coronel Kadafi, homem forte da Líbia. Eu assessorava, na época, o ministro César Cals, das Minas e Energia. O presidente Médici, com todos os problemas internos e denúncias de tortura, enfrentou as pressões dos Estados Unidos e adotou o mar territorial de 200 milhas. Isto quer dizer que a chamada política externa independente é uma grande luta, que não é de esquerda ou de direita, é nacional. Esta luta, para o bem e para o mal, tende a ficar cada vez mais agressiva, porque, na medida em que, morto o comunismo, os Estados Unidos tomaram conta do mundo, hipoteticamente, e este mesmo Estados Unidos hoje não tem uma política diplomática. Tem uma política apenas de ocupação de outros países e ocupação de mundo. Ora, isto está confrontando os nossos interesses, que não são só nossos. Por que apareceu um Evo Morales, na Bolívia, por que apareceu o presidente Chávez, na Venezuela? Não é apenas um problema porque apareceram esses homens, messiânicos ou o que seja. O problema é que as falhas dos norte-americanos e o completo descaso para a América Latina, por exemplo, fizeram com que as mobilizações nacionais desses países criassem as suas lideranças. O ódio ao presidente Chávez, da parte de setores conservadores, no Brasil, eu acho, sinceramente, que não tem razão de ser. Porque esse é um problema da Venezuela, como o presidente Evo Morales é um problema da Bolívia. E nós também temos os nossos problemas, graves, cada qual a seu modo. Então o que nos interessa hoje, com a política externa, não é apenas a questão diplomática. É a questão de mercado, é a questão de poder. É a questão de querermos – e temos esse direito – de sentarmos no Conselho de Segurança da ONU. Porque, somos amigos para quê? Apenas para ajudar os outros.

P – Eu não entendo esta insistência do Brasil em ocupar uma cadeira no Conselho de Segurança da ONU. A ONU é uma instituição muito questionada. Além disso, uma posição dessa acarretaria um ônus muito grande, inclusive financeiro, porque teríamos que arcar com o financiamento de muitas das operações desse organismo, além do fato de a ONU ser hoje quase inteiramente dominada pelos Estados Unidos.

R – Bom, essa sua impressão é válida até certo ponto. Quando a ONU nasceu, como filha da Liga das Nações, com o fim da segunda Guerra Mundial, claramente, ela refletiu os anseios de uma luta de guerra fria, tanto assim que o Conselho de Segurança teve na época dois países inteiramente anticapitalistas: a China e a então União Soviética. Só que, morto o sistema socialista, ficou o desvario do capital solto. E este desvario só serve a uma nação. Mas isto exige que nós devamos trabalhar para modificar a ONU, que tenhamos acesso às decisões mundiais e participemos. Então mesmo com os americanos dominando, sabotando a Unesco e outros programas culturais, você hoje tem que ter uma reformulação da instituição. É verdade que os próprios países que hoje compõem o Conselho de Segurança, aparentemente, não se sentem seguros em que haja modificações. Por quê? Porque, no caso das modificações, que propiciariam a ascensão do Brasil, da Índia, da Alemanha ou do Japão, você teria modificações que provavelmente não vão interessar ao mundo ocidental. A ONU é desmoralizada, é. Mas por quem?

P – Mas eu me refiro é ao papel do Brasil neste Conselho.

R – O Conselho de Segurança das Nações Unidas deve ser oxigenado, para que as decisões desse órgão se voltem não para a guerra, mas para a paz, para a construção de sociedades que levem de volta a questão humana, o problema dos territórios, o problema das nações. A presença desses novos países poderia modificar os votos, influenciando mais o plenário, e, assim mexer na estrutura das Nações Unidas, que é uma estrutura inclusive corrupta e que hoje é totalmente voltada para a guerra ou para a omissão. Hoje, você tem omissões da ONU vergonhosas, como é o caso da questão palestino-israelense, do Iraque. Então, com esse novo formado, a partir da presença desses novos países, a ONU poderia voltar-se não para os confrontos, mas para a solução dos conflitos de cada um, que não são apenas territoriais ou econômicos, pois você tem a questão do racismo, da pobreza, das iniqüidades. Hoje, você tem a militarização do mundo, que não pode estar a serviço da paz. E ela interessa a quem? Interessa aos grandes vendedores de armas e, acima de tudo, à discórdia e à supremacia de um poder, que hoje está nas mãos de um país. O ministro de Relações Exteriores do Canadá, logicamente falando em nome de seu aliado, os Estados Unidos, disse uma coisa muito concreta. Aquilo entrou na canela do mundo. Ele disse: “Estamos no Iraque para dividir a cota do nosso petróleo”. Ora, esse tipo de coisas leva as relações internacionais a impasses que não nos interessam. A posição brasileira hoje tem à frente dela um funcionário destacado, um pensador e uma figura muito respeitada internacionalmente: o chanceler Celso Amorim. Ele tinha sido chanceler do ex-presidente Itamar Franco e, já nesta época (1992-1995), eu, inclusive trabalhava no Palácio do Planalto, quis fazer modificações no Itamaraty. Politicamente, não foi possível, ali. Hoje, isso já é possível, por várias razões. Não é que o Governo Lula seja bonzinho, mas é que a realidade exige.

P – Ele também tem lá o Samuel..

R – Exato. Na retaguarda, Celso Amorim tem a figura, pessoalmente honesta, um homem que tem um pensamento nacional, voltado para os interesses brasileiros, que é o embaixador Samuel Pinheiro Guimarães. As suas idéias são idéias de um país que procura um espaço internacional. E dentro deste espaço, o Itamaraty consegue com todos os seus problemas e erros – o Itamaraty tem erros, também -, consegue barrar hegemonias que outros tentam impor à região. Por exemplo, o governo brasileiro atual faz muito bem em não brigar com vizinhos. Tudo o que está acontecendo na Bolívia, no Equador, na Venezuela, são problemas políticos que nós não temos nada a ver, como eles também não têm nada a ver com nossos problemas, nossos impasses no Congresso (corrupção)… No caso aí, os nossos acordos, as nossas discordâncias são problemas de Estado. O presidente Lua vai passar, o presidente Chávez vai passar. Agora, esses radicalismos que aí estão têm como fruto a falta de uma política para a região. Só que há uma violenta resposta, cada qual a seu modo, dessa presença ausente ou ausência presente da política americana para região.

P – Mas vamos abordar a integração sul-americana. A gente vê que a coisa caminha razoavelmente bem e se compararmos nossa política atual com o passado, vamos descobrir que já caminhamos bastante. Está aí o comércio se multiplicando, os projetos comuns se estendendo. Mas há alguns contratempos. Ultimamente, o presidente Hugo Chávez, por causa de seu feitio pessoal muito próprio, com seus transbordamentos de linguagem, às vezes em tom agressivo, tem provocado uma polêmica, e até constrangimentos, como essa referência que ele fez ao Senado brasileiro, quando disse que os senadores agem como papagaio dos Estados Unidos.

R – A questão da agressividade é uma questão humana, mas o que há é a falta de uma democracia, não de voto, de urna, mas de pensamento. Este é um dos grandes problemas nas nações em desenvolvimento. Vamos explicar melhor. No caso do presidente Hugo Chávez, a sua agressividade, não é só em relação ao Brasil… Ele já cometeu erros graves em relação a outros países. Ele ainda não entendeu que a revolução que se passa na Venezuela é benéfica para o mundo, principalmente para o mundo latino. A forma final dessa revolução, deste movimento, é venezuelana. Mas a idéia que nos chega é que o presidente Chávez não tem uma diplomacia forte. Vejamos: Hugo Chávez não vem da diplomacia e sequer foi parlamentar. Ele vem do quartel. Ele é um profissional militar e, à moda deles lá, um patriota. Ele quer mudar o país, baseado aí na grande felicidade de ter bilhões de dólares em petróleo. O problema é que este seu estilo de críticas desvairadas a outros países, inclusive ao nosso Congresso, não me parece o melhor. Ele ainda não entendeu que a integração latino-americana só pode ser feita com a unidade nacional e, no caso, a unidade das nações amazônicas, para a qual existem muitos projetos, inclusive do Exército brasileiro, e a unidade continental. Ou seja, se você é de um país que tem tanto dinheiro e quer mudar ou pelo menos minorar o sofrimento das multidões… Porque o sistema capitalista está cada vez pior para as multidões, e esta piora econômica se reflete na piora mental, que chega também aos dirigentes… Então, no caso, ele não poderia jamais criticar ou considerar que existe um velho Mercosul ou um novo Mercosul. O chanceler Celso Amorim colocou muito bem isso: não existe nem o velho nem o novo. Agora, para você criticar, você tem de criticar dentro (dele) e não fora.

P – Mas o Chávez se queixa que o Mercosul se transformou num órgão de defesa do interesse capitalista, em vez de se preocupar com a soberania e a questão social das suas nações. Ele também considera atroz aquela obrigação exigida aos países entrantes de baixar consideravelmente as tarifas alfandegárias, o que viria a atingir de morte a incipiente indústria venezuelana. Ele não estaria com suas críticas acerbas tentando implodir o Mercosul ou pelo menos tentando escapar destas restrições?

R – Quem tenta implodir o Mercosul é Washington. Por quê? Porque o Mercosul é um mecanismo de defesa de nossos produtos regionais. Claramente, todo início tem problemas. Eu gostaria que alguém me dissesse como está a União Européia. Eu sei um pouco como ela está: as brigas, os ódios, as tarifas, ou seja, quanto tempo de formação tem a União Européia (o Tratado de Roma, que deu origem a ela acaba de comemorar 50 anos). Então você não pode resolver todas estas questões fora do organismo. Você tem de chegar dentro do organismo e brigar dentro dele, defendendo os interesses do seu país e mostrar que os problemas foram criados por empresas e governos de fora, justamente para dificultar nossa integração. Agora, o que é lamentável é que o Mercosul, que ainda não começou, na prática, pois não está completamente formado. E já tem esse tipo de problema, porque o presidente Chávez parece, com todo o respeito que tenho a um Presidente, um desconhecedor do que é a luta contra o capital. No caso dele, ele tem um movimento, uma revolução interessantíssima, porque tem atrás dele, não operário ou camponês, mas as forças armadas. Trata-se de um projeto de forças armadas. Na América Latina, nós tivemos, na década de 70…

P – Mas é um projeto militar que difere daqueles projetos das ditaduras…

R – Correto. Olha, a falência de projetos e a não confiança militar latino-americana nos projetos americanos levou militares a desconfiarem que, se o país não tiver um projeto seu, inclusive com a participação e de estratégia militar, alguma coisa vai dar muito errado. É que a política americana é de desconhecer a soberania nacional, é de invasão. O que é o neoliberalismo? É de invadir e arrebentar os outros. Você se lembra que já houve aqui na América Latina, um projeto progressista, que foi o do general Velasco Alvarado. Tal projeto morreu em função de outros problemas que não dá para examinar aqui. Pois bem, o general Alvarado chegou a estabelecer relações com a União Soviética de então e até comprou armas. O projeto acabou morrendo, mas a idéia militar (do projeto nacional) renasceu na Venezuela, por várias razões. Os militares da Venezuela lutaram contra as guerrilhas, contra as esquerdas, então não há nenhum esquerdismo no projeto militar venezuelano. O presidente Hugo Chávez não é um homem de esquerda, como acontece com os militares latino-americanos em geral. Agora, depois de 64, no Brasil, todos os movimentos de golpe na América Latina foram patrocinados pelos Estados Unidos, como acabam de atestar os próprios documentos liberados pela CIA, mostrando como ajudaram para derrubar o presidente João Goulart. Esses militares, não sendo esquerdistas, são patriotas, à moda deles. Já as torturas e os abusos nos anos de chumbo já envolvem outro aspecto. Então, o presidente Chávez, ao não saber tratar melhor (no plano retórico) os seus vizinhos, como no caso os brasileiro, pode se dar mal, porque quem está muito feliz com essas diatribes não é a América Latina. Para mim, o presidente cometeu um erro grave e até grosseiro ao chamar os senadores brasileiros de papagaios de Washington, como a direita chamava antigamente os comunistas de papagaios de Moscou. Mas a política externa brasileira, o parlamento brasileiro, mesmo não gostando, vai aprovar a entrada da Venezuela no Mercosul, porque aqui não se trata de um problema de Chávez ou um problema de Lula, é um problema de Estado.

P- Eu gostaria agora de abordar a questão energética, que vem se aguçando ultimamente, de forma preocupante. Estamos vendo cortes de luz em todos os países da América Latina, à exceção da Venezuela e, ainda, daqui do Brasil, embora a gente saiba que daqui a pouco, podemos entrar nessa. E isso porque nós nos preparamos com o reforço das operações da Petrobrás e o programa do álcool, já desde a crise mundial dos anos 70. Qual é a saída que você vê para essa crise, agora com o Chávez, montado no petróleo e nos petrodólares. Fala-se que ele estaria agora com 60 bilhões de dólares para gastar na sua revolução bolivariana.

R – A crise energética mundial e em particular a nossa crise latino-americana é um problema diplomático, misturado com a questão econômica e, acima de tudo, a meu ver, com a falta de projetos nacionais. No caso brasileiro, falta se debruçar sobre o seguinte: quando houve a crise do petróleo, nos anos 70, houve uma figura que disse mais ou menos o seguinte: “Vamos vender para o Brasil, não importa se vai pagar depois, porque o Brasil é um país amigo”. Esta figura se chamava Saddam Hussein. O Brasil, nessa época, teve um embaixador general no Iraque. Muito bem. Os grupos das potências ocidentais sempre impediram e sabotaram a construção de nossas usinas nucleares. Há um almirante – Álvaro Alberto, da Marinha, pioneiro, patriota – que morreu muito amargurado com esse problema. Eu tive a felicidade de participar de uma reunião, no Peru, integrando a equipe do ministro César Cals, da reunião da OLADE, Organização Latino-Americana de Desenvolvimento Energético. Nesta reunião, onde o ministro César Cals, um militar, se dirigiu ao embaixador cubano e propôs que deveríamos restabelecer relações diplomáticas. Foi quando o representante cubano (não me recordo de seu nome) fez uma proposta que foi de pronto encampada pelo ministro brasileiro, pelos mexicanos e a grande maioria dos presentes, à exceção de alguns países centros-americanos e, logicamente, os Estados Unidos, por razões que até hoje não compreendemos. A proposta era a seguinte: a solução da crise energética latino-americana passa por etapas: a curto, médio e longo prazo. Essas etapas têm a ver então com projetos nacionais, com industrialização, e, se fosse o caso, também, a questão nuclear. Ora, a questão nuclear no mundo, e não é só no Brasil, começou muito mal por causa da bomba atômica que os americanos jogaram sobre Hiroshima e Nagasaki. Então, a imagem horrorosa do que aconteceu faz chocar a humanidade até hoje. Mas há um problema: o crescimento do próprio capital requer energia, e, ao requerer energia, os grandes países, aqueles mais ricos, simplesmente vetaram a solução, por exemplo, do lixo nuclear. A questão do lixo nuclear pode ser resolvida, é um problema de estudo, na área de ciência e tecnologia. Então faltou isso também para a América Latina. Agora, é necessário fazer um inventário latino-americano e, neste inventário, por país, por região, você vai fazer um projeto continental. Se a OEA, que é um órgão morto, miseravelmente, morto, e anti-latino-americano, existisse, seria encarregada disso. Mas países reunidos em blocos, como, por exemplo, o Mercosul, podem tratar também disso. Não é só a questão da economia. O bloco comercial que se forma, daí o medo dos americanos, ele vira militar, estratégico, diplomático. Se isso já tivesse sido encaminhado de forma orgânica, não teríamos agora esse vexame da Argentina (apagões). A culpa é do presidente Kirchner, não, não vou dizer isso.

P – Muito se fala da culpa das privatizações, quando empresas privadas compraram estatais e depois não quiseram investir, pois só se preocupavam com lucros…

R – Exatamente. As privatizações, que também foram uma praga, que chegou ao Brasil desordenada. Ninguém é contra a privatização, mas ela chegou aqui com interesses inconfessáveis. No caso aí, se tratou da privatização, como se isso fosse um bombom (para os empresários), de uma forma irresponsável. Resultado: nós devemos nos solidarizar com a Argentina e verificar com o que podemos cooperar, o que a América Latina pode fazer para que o povo argentino não padeça situações piores. Então, a questão energética, nossa, por exemplo.. Eu estive na Alemanha algumas vezes e naquela época eu presenciei ofertas de investimentos na energia aeólica no Brasil. A nossa elite é pavorosamente péssima, então, ela não cuidou desse problema. E vamos ter problemas a curto, médio e longo prazo. No caso aí, estamos retomando a questão nuclear, que deve ser retomada, porque ela não é uma questão só nossa, mas do hemisfério e de todo o mundo. Mas também devemos formar mais cientistas para ver os seus desdobramentos. A Usina nuclear é perigosa, mas temos também fenômenos naturais inevitáveis, como o tsunami, que ocorreu há pouco na Ásia. Mas devemos aprofundar os estudos nesta área. O presidente Chávez, por exemplo, poderia destinar uma parte dessa dinheirama que ele tem para financiar esses estudos e não só para o lixo nuclear, mas para a fome, para a agricultura e outros problemas prementes, mas dentro do Mercosul e não fora do Mercosul. A época dos quixotes já acabou. A Venezuela parece nadar de braçada nessa crise energética: tem hoje as reservas mais altas do mundo, tanto em petróleo como em gás, justamente os dois produtos de que mais se ressente a economia, em todos os setores e em toda parte.

R – A crise energética no subcontinente tem raízes muito profundas, porque os governos não cuidaram dos projetos de país. Junte-se a isso a febre das privatizações, que foram verdadeiros manás dos céus para as empresas, em detrimento da ciência, da tecnologia, da previsão orçamentária, da presença orgânica do Estado, que determinasse rumos. Necessitamos igualmente de um organismo operacional. A OLADE está tão morta quanto à OEA. Antigamente, a gente só ouvia falar de apagão em Cuba, mas hoje isto se estendeu à América Latina toda e a América Latina não tem o bloqueio que sofre Cuba, aliás, imposto de uma forma ridícula (pelos Estados Unidos) e que não funciona mais. E isto nos afeta também, veja a declaração do ministro da Fazenda, Guido Mantega, de que “o Brasil cresceu um pouquinho porque, se crescesse mais, a crise energética chegaria”. Mas tal declaração constitui um alerta, porque estamos muito mal. O apagão, na verdade, já chegou entre nós. A situação é mais dramática na Argentina, concordo. Sua economia é mais frágil e as privatizações lá se encarregaram de derrocá-la de vez. E ela está nas mãos do presidente Chávez, que tem comprado títulos de sua dívida externa e feito outros investimentos de grande monta naquele país. Isso não quer dizer que a Argentina está de ladeira abaixo, não.

P – Além da Argentina, você tem também o Chile sofrendo de grave crise, porque não tem gás. Recebia o gás da Argentina, mas agora este suprimento foi cortado para atender à demanda interna daquele país.

R – Exatamente. Mas volto a dizer, nossa questão-chave é a falta de planejamento, situação agravada com a falta de investimentos por parte das empresas privadas que adquiriram as grandes estatais de energia elétrica. E este planejamento não deve ser global, abrangendo também as questões sociais, políticas, de soberania. Nós precisamos também criar projetos regionais próprios no continente. No nosso caso brasileiro, você tem o Governo Federal meio desesperado para pressionar o Ibama para dar licença para as usinas. O Mercosul, devidamente reforçado, poderia preencher esse fator de catalisação. Mas esqueça de decisões rápidas e apresadas. Sem planejamento, não chegaremos a lugar nenhum. Eu vejo o presidente Lula muito ansioso em fazer de qualquer maneira as hidrelétricas do Rio Madeira. Não é bem assim. A Bolívia já está chiando. O que deve ser feito imediatamente é acionar este organismo, que pode ser o Mercosul ou não, para que ele envolva o Brasil, a Argentina, Venezuela e outros países-chaves – não esqueçamos o México -, para que trace um projeto, um inventário energético do continente. Agora, volto a repetir, isso vai produzir resultados a curto prazo. Milagre não existe. Nós precisamos tomar alguma atitude. Nós temos duas crises explosivas, no momento: a Argentina, que cortou o gás para o Chile e não sabe quando o restabelecerá. Isto representa um sério prejuízo para o Chile que, apesar de não ter relações diplomáticas com a Bolívia, já está em contato, por baixo do pano, com os bolivianos para salvar a pele. Então, você tem a crise argentina que se espalha para o Chile e, agora uma nova crise aqui Brasil-Bolívia.

P – Sei, a Bolívia está reclamando de que as usinas no Rio Madeira vão inundar terras agricultáveis naquele país.

R – Olha, eu sou brasileiro, mas a Bolívia tem razão. Na época do regime militar, logo depois de Itaipu, imaginou-se fazer a hidrelétrica do Rio Madeira. Eu próprio e o ministro César Cals, trabalhamos e viajamos com os técnicos da Eletrobrás, mas o projeto não se concretizou. Agora, a questão volta à tona. Mas, ao que parece, a Bolívia não foi consultada para nada e por isso, os seus setores mais radicais estão com a faca e o queijo na mão. Nós sabemos que as hidrelétricas daquela área poderão causar enormes problemas de alagamento de terras, depredação ambiental, que também atingem o nosso território. Além do mais, os militares não cuidaram da segurança das fronteiras, que estão ainda todas abertas e sem fiscalização.

P – E como você vê o papel do presidente Hugo Chávez e toda a sua pujança de petróleo e gás?

R – O presidente Hugo Chávez é produto da estupidez americana no continente. Ao lado disso, você tem uma ascensão de assa, um processo político não exatamente revolucionário, mas reformista do capitalismo. Ele pode até se beneficiar dessa crise, desde que ele tenha, primeiro, diplomacia, não agrida (verbalmente) os vizinhos e entre no Mercosul, com todos os problemas. Então, a vinda dele para o Mercosul é bem-vinda. Agora, dentro do Mercosul, ele vai ter de trabalhar as divergências de cada um, lutar e lutar muito.

P – Mas ele alega a direita do Brasil e do Paraguai impede a entrada da Venezuela no Mercosul…

R – Ora, isto é mais retórico. Essas grosserias… Eu acho que o Chávez deveria ler aquele clássico do Lenin “O esquerdismo, doença infantil do comunismo”, onde essas atitudes radicais apenas atrasam os movimentos progressistas, nacionalistas, revolucionários. Por que. Porque o que desejam os Estados Unidos hoje, cada vez mais? Desejam imitar o que os ingleses faziam, dividir para reinar. Na verdade, o processo revolucionário na América Latina não tem lideranças continentais. Cada país faz o seu processo, os seus erros, os seus acertos. Se há soluções comuns para se trabalhar? Há e a questão energética é uma delas. Ora, o Chávez, com o dinheirão que ele tem, a vantagem que ele tem hoje, nessa crise do capital, se ele não souber usar a diplomacia, mesmo enfrentando os Estados Unidos, que querem matá-lo (já tentaram uma vez matá-lo), se ele não se reunir à América Latina, ele vai perder a própria revolução dele. E isto seria lamentável porque ela constitui uma coisa nova na América Latina, que é um processo com os militares concretamente no poder.

P – O que acha do processo de integração latino-americana. Ela está mesmo avançando?

R – Sou muito otimista neste aspecto. O Brasil deve trabalhar esse processo. Nós já temos projetos coletivos em termos continentais, embora, as grandes potências sempre conspiraram para nos dividir. E isto vem desde o Tratado de Tordesilhas, que dividiu o Brasil para Portugal e o resto da América Latina para a Espanha. Mas a gente se recorda que desde o Barão do Rio Branco (final do século XIX e começo do século XX) e o primeiro Governo Vargas, em 1930, já falava em integração latino-americana. Tudo teórico, sem ações concretas, mas estava lá plantada a sementinha. E hoje nós temos todo um esforço para a integração, principalmente aquele envolvendo o Itamaraty e as Forças Armadas. Há por exemplo aquele projeto de ampliação do Calha Norte para abarcar os oito países amazônicos. Os militares tentaram o Calha Norte, para proteger e desenvolver as fronteiras na região norte, inviabilizado por várias razões, inclusive externas. Este projeto visaria uma série de ações comuns para combate ao contrabando, defesa do meio ambiente, da biomassa e dos nossos territórios, a questão energética. Você também poderia convidar a Argentina, que não é Amazônica, mas é importantíssima para a região. Ou seja, você tem todo esse trabalho de integração em todas as áreas. Setores de pensadores e estrategistas e uma parte de diplomatas estão preocupados com esse anti-chavismo das nossas elites, que não vêem situações complicadas como a da Colômbia. Ora, a Colômbia aumenta o tráfico direto para os Estados Unidos. E cadê o Plano Colômbia de cinco bilhões de dólares? É um problema para nós, não sabemos o que acontecerá na Colômbia. O presidente Uribe já não é o xodó dos americanos, já não é o xodó dos ultras, internamente. Isto significa que você deve ter a integração com todos, com o Suriname, com o Equador… E também devemos estar preparados para as novas realidades. Com a globalização, por exemplo, você tem aí a entrada direta de países extracontinentais, como a China, a Rússia, o Irã, e não é só via Venezuela, mas também pela Venezuela. Estão vindo também a Coréia do Norte e até a Arábia Saudita, que acaba de estabelecer relações diplomáticas com Cuba, não obstante ser aliada privilegiada dos Estados Unidos. Existe aí todo um campo novo para nos afirmarmos como país e como continente.O jornalista Danúbio Rodrigues, 65, tem 45 anos de experiência em política internacional, desde suas reportagens e análises no Jornal do Brasil e no Estado de São Paulo à sua experiência de assessor em 11 ministérios e no Palácio do Planalto, durante as gestões dos presidentes José Sarney, Fernando Collor e Itamar Franco. Na entrevista que deu ao jornalista FC Leite Filho, do blog Café na Política, sobre a integração latino-americana, Danúbio, natural do Rio Grande do Norte, se disse convencido de que a Venezuela entrará e fortalecerá o Mercosul. Ele acha que a polêmica provocada pelas diatribes do presidente Hugo Chávez contra os parlamentos do Brasil e do Paraguai serão superadas, porque o que está em jogo é a instituição e não os governantes eventuais. Não obstante, o jornalista considera a revolução boliviana uma experiência saudável e necessária para a América Latina e para os países emergentes, embora considere que Chávez careça de uma diplomacia mais eficiente. Danúbio Rodrigues ainda falou da crise energética, que hoje submete quase todo o continente, à exceção da Venezuela, que nada em petróleo e gás, só será resolvida depois que nós e nossos vizinhos resolvam adotar um projeto comum, levando em consideração as potencialidades de cada um. E tal projeto poderia muito bem ser encaminhado por um Mercosul reforçado com a Venezuela e a Colômbia. Sem isso, diz ele, não haverá solução, e sim aprofundamento da crise e suas implicações desastrosas na vida das pessoas.

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