Home América Latina Como se fabricam os virais na internet: do ex-rei Juan Carlos à Cristina

Como se fabricam os virais na internet: do ex-rei Juan Carlos à Cristina

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Por FC Leite Filho

“¿Por qué no te callas?“, um vídeo no Youtube em que o antes impoluto rei de Espanha, Juan Carlos I, supostamente repreendia o então presidente Hugo Chávez, da Venezuela, talvez tenha sido o primeiro dos muitos temas virais que passaram a infestar a internet. De tão acessada ou “viralizada”, como se diz entre os internautas, a expressão virou pichações de parede, estampa de camiseta e bonés da juventude yuppi. Viu-se depois, como examinaremos mais adiante, que a história, ocorrida no já distante ano de 2007, era bem outra, e que o rei não tinha nada de imaculado. Foi obrigado a abdicar, em 2014, sob o peso de graves denúncias, que vão de envolvimento com a corrupção à caça ilegal de elefantes na África, além de ser expulso da organização internacional em defesa dos animais. Já Hugo Chávez, morreu como herói nacional e dos países emergentes, numa despedida que acolheu mais de dois milhões de pessoas, em Caracas, em 2013.

Mas, antes que nos aprofundemos nesse primeiro viral, permita-nos que nos detenhamos no mais recente hit das redes sociais: a alegada desfeita pespegada por Cristina Kirchner, presidenta da Argentina, aos chineses, em plena Pequim, que visitou oficialmente na semana passada. Num de seus tuítes, ainda impregnada da acolhida carinhosa que recebeu dos dirigentes da China, Cristina, respondeu à bateria de críticas da oposição de seu país, com uma brincadeira afetiva em que trocava o “r” pelo “l”, como o fazem os chineses quando falam em espanhol: “Serão todos de ‘La Cámpola’ (La Câmpora, Juventude kirchnerista)? Ou vieram apenas pelo ‘aloz’ (arroz) e pelo ‘petlóleo?'”, tuitou Kirchner na quarta-feira, 04/02/15, ao referir-se aos cerca de mil empresários e funcionários que a recepcionaram em palácio.

Isso bastou para que as redes sociais, acionadas pela artilharia midiática, do New York Times ao Le Monde, todos hoje propriedades de banqueiros e outros graduados das altas finanças, tomassem aquilo como uma afronta ao povo chinês. Os chineses, eles próprios, vítimas, desde o advento de sua Revolução Comunista de 1949, dos mais despudorados e agressivos achincalhes dessa mesma mídia e que culminaram com a incitação para escrachar o trajeto da tocha das Olimpíadas de 2008, realizadas em Pequim, pelas ruas de Londres, Paris e outras capitais europeias, preferiram ressaltar os acordos celebrados com a Argentina, que montam os 20 bilhões de dólares.

Talvez esteja aí mesmo a razão para tanta preocupação com a alegada gafe da presidenta, que elegeu a China, e não mais os Estados Unidos ou a Europa, como o seu principal parceiro comercial e diplomático. Por causa disso e de seu projeto nacional de independência, com inclusão social, Cristina vem sofrendo um processo de desestabilização, claramente inspirado ou financiado por Washington, Londres e Paris, como demonstram as reações de seus principais jornais. O jornal La Nación, que reflete em Buenos Aires, e em escorreito espanhol, as posições desses centros financeiros, e ainda ressentido pelo malogro da operação destinada a incriminar Cristina Kirchner na morte do promotor Alberto Nisman, tentou fazer desse viral um carnaval de proporções planetárias: “Esta mensagem em que zombou da incapacidade dos chineses para pronunciar o “r” viralizou-se nas redes sociais, inspirou amplas notícias e artigos de opinião nos diários mais influentes do planeta e inspirou incontáveis reportagens de televisão sobre ela e a situação na Argentina”, indignou-se o jornal que faz par com o Clarín na conjura contra Cristina.

Conhecido aríete dos golpes de Estado e das ditaduras militares mais sangrentas da história argentina, o La Nación, esqueceu-se de mencionar que nenhum jornal de peso chinês, russo, iraniano ou independente do capital financeiro reportou ou viralizou o tema, e muito menos esclareceu que todos os jornais que citou –The New York Times, The Wall Street Journal, Financial Times, El País, Le Monde, Corriere della Sera, The Guardian, O GloboNew Yorker, The Independent –  foram comprados recentemente por companhias e bancos transnacionais, para servirem-se deles como instrumento para facilitar seus negócios e disseminar a cartilha neoliberal.

Mas voltemos ao “¿Por qué no te callas?“, para verificar como se geram esses virais da internet. No meu livro, Quem Tem Medo de Hugo Chávez?, eu me detive sobre o assunto, quando recordei que o episódio “ocorreu durante a reunião final de chefes de Estado da Cúpula Íbero-Americana, que reúne 22 países de fala hispânica nas Américas, juntamente com a Espanha, Portugal e Andorra, em Santiago do Chile, no dia 10 de novembro de 2007. Numa intervenção, Chávez denunciou as maquinações internacionais do ex-primeiro ministro José Maria Aznard, antecessor e integrante do conservador PP (Partido Popular), adversário dos socialistas do PSOE (Partido Socialista Obrero Espanhol) contra o governo venezuelano.

“Chamou-o de fascista e o acusou de ter participado diretamente no Golpe de Abril, que depôs o governo constitucional e sequestrou seu presidente, no caso, o próprio Hugo Chávez, por 48 horas, em 2002. Zapatero exigiu “respeito” porque Aznar “tinha sido eleito pelos espanhóis”. Chávez, que também tinha sido eleito democraticamente pelos venezuelanos, em seguidas eleições, pediu que Zapatero dissesse a Aznard, “com as mesmas palavras” para “respeitar a dignidade do nosso povo”. De inopino e dedo em riste, intervém o rei Juan Carlos, que estava sentado no mesmo lado da mesa onde se encontrava o líder venezuelano, tendo a separá-los somente o chanceler espanhol, Miguel Ángel Moratinos e o presidente da Nicarágua, Daniel Ortega, dirige-se rispidamente a Chávez: “¿Por qué no te callas?

“Chávez continuou falando, aparentemente sem ter prestado atenção ao rei, afirmando: “O premier Aznard pode ser um espanhol, mas é um fascista.E e isto é uma falta de respeito”. Em seguida, o presidente da Nicarágua, Daniel Ortega acusou o embaixador da Espanha em Manágua de conspirar contra seu governo. O rei então se retirou em protesto, o que deu margem à interpretação de que Chávez tinha ganho a discussão, como se pode verificar nos vídeos reproduzidos pelo Youtube no endereço: http://www.youtube.com/watch?v=X3Kzbo7tNLg e http://www.youtube.com/watch?NR=1&feature=endscreen&v=yFG0zsvsvHc

“Foi o que aconteceu, mas a mídia, e as redes sociais, quase totalmente dominadas pela mentalidade colonialista, reverteram os fatos para dar a impressão de que o rei tinha humilhado Chávez, dando-lhe um pito. Como se verifica nos vídeos, trata-se de versão claramente adulterada, porque, se observarmos bem a sequencia dos quadros, verificaremos que, na realidade, tanto o rei como Zapatero e o chanceler Moratinos, se mostram atarantados, sem saber contra-argumentar.

“Ortega partiu duro sobre o rei, acusando a Espanha de estar aliada política, econômica e militarmente ao que chamou de ditadura global, quando disparou: “Não se esqueça que o território espanhol foi utilizado para bombardear a residência do presidente da Líbia, Muamar Kadafi, em que assassinaram a filha de Kadafi , entre outros… E isto é recente, é história recente, é história da época democrática da Espanha. O Franco já tinha passado… e depois disso, os senhores, prestando-se solicitamente à política terrorista dos yankis para bombardear a casa de Kadafi e assassinar crianças”. Ante os rizinhos nervosos que Jose Luiz Zapatero dava como resposta, e a visível contratura do rei, Daniel Ortega foi fundo: “Os senhores estão na OTAN (Organização do Tratado Norte, a aliança militar da Europa e Estados Unidos). Ou não estão na OTAN? A OTAN está aí para distribuir balinhas, para construir escolas, para dar saúde…?, ironizou.

“O rei Juan Carlos de Borbón y Borbón não se contém e abandona o recinto depois que ouve de Ortega que o embaixador espanhol em Manágua utilizava a sede da embaixada para, juntamente com os americanos, conspirar contra a volta dos sandinistas ao poder. Mas o que prevaleceu na internet e na mídia em geral, foi o destempero real, tomado como uma descompostura e uma reprimenda às posturas de Chávez. Não importava, para a mídia e a oposição, que o monarca estivesse reagindo como um colonizador, mesmo depois de 200 anos da independência formal do jugo espanhol. Foram mais de três meses de tonitruante bombardeio nas redes sociais, na TV, no rádio e nos jornais, levando os oposicionistas ao paroxismo.

“Juan Carlos, que até aquele momento desfrutava da imagem de estadista moderno, apesar de não ter sido eleito e ainda por cima indicado pelo ditador fascista Francisco Franco, foi transformado em herói. Sua efígie, encimada pelo “¿Por qué no te callas?” foi motivo de vídeo-clippings, ring tones (toques de chamada) de celulares, e ilustração para camisetas, numa farsesca imitação dos costumes dos jovens com a imagem de Che Guevara, enquanto Chávez era vilmente ridicularizado. Menos de três anos depois, sua majestade espanhola cairia em descrédito depois da revelação, primeiro, do indiciamento judicial de seu genro Iñaki Urdangarin, por prática de negócios escusos; depois, o próprio rei flagrado na matança de elefante e escapadelas matrimoniais na África, junto com notícias nada abonadoras da imagem real no mundo das finanças.

“De qualquer maneira, episódio do”¿Por qué no te callas?“, serviu, à parte o escarcéu midiático, para expor as reais intenções daquelas cúpulas de chefes de Estado, convocadas e patrocinadas pelas velhas e antigas metrópolis colonizadoras: enquadrar e intimidar as ex-colônias. Existe por sinal uma coincidência instigante: tanto a Cúpula Ibero-Americana, patrocinada pela Espanha, a partir de 1991, como a Cúpula das Américas, reunindo todos os 34 países das Américas, inclusive os de língua inglesa, como Estados Unidos e Canadá, organizada, em 1992, pelos norte-americanos, surgiram pouco depois da reunião de banqueiros e tecnocratas euro-americanos que produziram o infausto Consenso de Washington, em 1989. Aquela entidade supostamente etérea, mas super efetiva, em seus desígnios em obrigar os países emergentes a se desfazer dos bens públicos e recursos naturais e passá-los às empresas transnacionais, submetendo-os a enormes sacrifícios e humilhações, como demonstrou a derrocada da Argentina, em 2001”.

São assim que se produzem os temas virais na internet, exatamente como se fazem as notícias tendenciosas na grande mídia.

 

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