Por FC Leite Filho
O preço do barril já varou a barreira psicológica dos 100 dólares. Este é apenas um e talvez o mais leve dos efeitos potenciais das rebeliões populares contra as tiranias da Tunísia, Argélia, Iêmen, Egito, Jordâniaetc. Outros impactos mais graves são visualizados, numa gradação, que pode incluir até uma ameaça atômica, ainda que localizada. Por trásdos conflitos, está, junto com a ânsia de libertação daqueles povos secularmente oprimidos, o receio das grandes potências em ver escorrer pelos dedos seu domínio daquela parte do mundo onde se concentra mais da metade do petróleo.
A Internet, o Wikileaks, o Twitter e o celular podem até ter contribuído para precipitar os acontecimentos, mas a verdade é que a explosão de fúria daqueles povos, que começou com a Tunísia nos estertores de 2010, mostrou ser mais forte. Prova é que o corte brutal de todas aquelas tecnologias, pelo governo Hosni Mubarak, não impediu a articulação oposicionista, que levou mais de um milhão de pessoas às ruas do Cairo para clamar pela queda do regime.
Para entender o fenômeno, é preciso penetrar um pouco na geografia e na história. Como é sabido, os governos destes países hoje rebelados formam o escudo de proteção ao petróleo fornecido aos Estados Unidos, Europa e a outras nações não produtoras. Este escudo serviu caninamente, até aqui, ao chamado Sistema Ocidental, ou simplesmente Ocidente, naquela inflamável área do planeta, mais conhecida pelo nome de Oriente Médio.
No meio desses países insurretos, encontram-se ainda o Irã e a Síria, jurados inimigos de morte por não se deixar dominar; o Iraque, foi invadido militarmente duas vezes e está ainda sob ocupação e em guerra civil permanente. Por fim, temos Israel e os dois Territórios Palestinos (Faixa de Gaz e Cisjordânia), que vivem em constante conflito desde que o portentoso estado judeu foi fundado em 1948, tendo sua existência contestada por aqueles países vizinhos, todos de ascendência árabe e adotando o islamismo como religião predominante.
De uma maneira ou de outra, mas utilizando sobretudo sua alta tecnologia e avassaladora superioridade bélica – e também muito dinheiro e prebendas para cooptar as elites políticas locais -, o Ocidente vem dominando aquela área com mão de ferro, praticamente desde que o petróleo passou a conduzir a economia, no fim do século XIX. Não importa que as populações nativas sejam submetidas a um regime de terror, fome e desemprego, a ponto de muitas pessoas morarem no cemitério e nos tetos das casas, como ocorre, por exemplo no Cairo. Enquanto isso as 7 Irmãs, como são conhecidas as grandes empresas petrolíferas privadas, esbanjem ostentação e poder.
Algumas fissuras neste bloco monolítico apareceram ao longo dos anos: o Irã instaurou um regime nacionalista, em 1951, liderado por Mohammed Mosaddeq, mas que foi deposto, em, 1953, por fulminante golpe militar, abertamente comandado por Washington e Londres (na época, não se falava muito de direitos humanos ou direito de expressão, ainda que se brandisse sempre a ameaça comunista). O governante foi preso e o orgulhoso país dos persas retornou ao domínio ocidental.
O Egito, que não é grande produtor, mas constitui uma peça de grande valor estratégico, foi sacudido na mesma época por militares seculares de média patente, reunidos na Associação dos Oficiais Livres, a AOL. Seu líder era o coronel e depois general Gamal Abdel Nasser (* vídeo acima e nota de eto Almeida abaixo), que governou entre 1954 e 1970 e inspirou, com suas propostas nacionalistas, reunidas no nasserismo, jovens oficiais e lideranças civis progressistas de todo o mundo, principalmente na América Latina. Ele morreu num acidente aéreo neste mesmo ano, em circunstâncias até agora não esclarecidas. Seu vice-presidente, o também general Anwar Sadat, assumiu o cargo e logo abandonou o nasserismo e restabeleceu os vínculos com Washington. Sadat foi assassinado por uma seita radical, em 1989. Seu lugar foi ocupado pelo também vice-presidente e general Hosni Burak, que governa até hoje.
Mas Gamal Abdel Nasser tinha antes realizado duas das maiores aspirações de seu povo, a nacionalização do Canal de Suez, graças ao apoio da União Soviética, que fez frente à guerra desencadeada pela França, Inglaterra e Israel, e a integração de grande parte dos países árabes, longamente sonhada pelo panarabismo.
O Suez é por onde passa o eixo da navegação do petróleo e parte o comércio ocidental, que antes necessitava contornar toda a costa ocidental da África para atingir a Ásia. Ligando o Mar Mediterrâneo ao Mar Vermelho, este canal, de 163 quilômetros, foi construído ela França, em 1867, num consórcio, em que o Egito participava como sócio. Ocorre que, em 1882, a Inglaterra, então potência inconteste do mundo, obrigou o Egito a vender a sua parte, para pagar a dívida externa, e instalou suas tropas no canal.
O ano de 1979 marca dois outras insurgências: a ascensão de Sadam Hussein, no Iraque, e dos aiatolás, os altos clérigos islâmicos, no Irã. Sob Sadam, o Iraque, terceiro maior país petrolífero, passou por um processo de modernização e autonomia, o que contrariou os interesses ocidentais. Foi acusado de crimes contra a humanidade e de possuir armas de destruição massiva (esta última acusação provou depois ser uma farsa). O Iraque sofreu, por isso, duas invasões militares por forças dos Estados Unidos e da Inglaterra, na última das quais, em 2003, o presidente foi preso e executado.
Na revolução de 1979, os aiatolás, liderados por Ruhollah Musavi Khomeini, expulsaram os norte-americanos e europeus e instauraram um governo independente. Distanciaram-se, inclusive, da União Soviética, que dividia o mundo com os Estados Unidos, em áreas de influências. Lançou-se, num ambicioso projeto educacional, que o torna hoje um dos países mais avançados no plano militar e tecnológico, inclusive nuclear, além de dispor da segunda reserva mundial de petróleo.
Só 32 anos depois é que as populações demonstraram capacidade de articulação, primeiro derrubando a camarilha e o presidente da Tunísia, Zine El Abidine Ben Ali, em dezembro de 2011, numa corrente de contestação que agora assola não só o Egito, que está nas manchetes, mas igualmente Jordânia, Argélia, Marrocos, Iêmen, e, mais sutilmente, a Arábaia Saudita, o primeiro produtor de petróleo. Até onde chegará esses movimentos é a grande indagação que faz hoje o mundo voltado para democracia e a garantia dos direitos das populações ricas e pobres.
(*) Nasser lidera uma corrente militar que forma a União Socialista Árabe e derruba a monarquia pró-imperialista. Toma medidas importantíssimas: inicia a reforma agrária, nacionaliza a indústria sideurgica, cria a indústria naval e ferroviária nacionais, instala uma indústria química e de fertilizantes, além de nacionalizar o canal de Suez. Esta é a medida mais temida plo imperialismo, hoje, razão pela qual as bolsas tremem, pois coloca em questão o preço do petróleo no mundo inteiro, já que o canal é rota importantíssima para o petróleo. Enquanto o governo de Israel, apresentado pela mídia imperialista como democracia, defende a ditadura de Mubarak, o governo do Irã, apresentado como ditadura por esta mesma mídia, defende o levante das massas egípcias, não teme as massas e aposta numa ofensiva popular para os demais países árabes dominados por regimes pró-Israel e pró-ianques (Enviado por Beto Almeida).