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A vitória de Bachelet e a trampa da abstenção

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Por FC Leie Filho

A democracia representativa ou oligárquica ganhava eleições na Venezuela com quase 90% de abstenção do eleitorado, por causa do chamado voto livre. Na eleição de ontem no Chile, uma armadilha conservadora que tirou a obrigatoriedade do voto, provocou uma abstenção de 59%. O fato não tirou o brilho da vitória da socialista Michelle Bachelet, mas demonstra que as elites estão dispostas a ir às últimas consequências para barrar suas prometidas reformas.

Cito a Venezuela por ser este, juntamente com o México, um dos poucos países com governo civil na época do domínio das ditaduras na América Latina. Mas aquilo que era apontado como um governo democrático, não tinha muito de democrático, porque as grandes famílias, que se revezavam no poder, impunham programas altamente excludentes.

Populações inteiras, como as dos morros de Caracas, por exemplo, nunca tinham visto um médico na vida e as escolas eram quase inexistentes. Esta situação persistiu até a chegada do coronel Hugo Chávez ao poder, em 1999, que deu médico, escola e até computador para todo mundo. Chávez, o primeiro presidente do ciclo progressista, apelidado de “populista”, um termo mais refinado mas com o mesmo sentido que demagogo, foi seguido depois pelo Uruguai, Brasil, Argentina, Bolívia, Equador e Nicarágua. Sua democracia participativa, em contraponto à representativa, fez que as eleições contassem com uma média de quase 80% do eleitorado, mesmo mantendo o voto facultativo, e não só entre os venezuelanos.

Chávez, Tabaré, Lula, Néstor e Cristina Kirchner conviveram com o primeiro governo da socialista chilena Michelle Bachelet, entre 2006 e 2010. Michelle tinha planos ousados para sacudir o ranço neoliberal deixado pela ditadura pinochetista e esposou muitas das teses chavistas e lulistas, mas foi vencida pela reação, contentando-se em fazer um governo de meias medidas. Por isso, sua coalizão, a antiga concertación, perdeu a eleição para o pinochetista Sebastián Piñera, empresário mais rico do país.

No Chile, a reeleição é proibida e este entrave pode até ter sido um bálsamo para Bachelet, que se recolheu, ao longo desses quatro anos de volta ao neoliberalismo selvagem, podendo apreciar à distância, no posto que retomou na ONU, em Nova York, a explosão social que sacudiria dali a pouco seu pequeno país de 16,5 milhões de habitantes. A partir de 2011, os estudantes, pais de alunos, operários, aposentados e a baixa classe média tomaram as ruas para protestar contra o lucro excessivo das escolas, das cínicas médicas e das financeiras que cuidavam das aposentadorias.

Os lucros estupendos dessas empresas tampouco revertiam em ensino, saúde ou aposentadoria de qualidade. Muito pelo contrário, a ganância por mais e mais lucros estava sucateando as faculdades, os hospitais e os fundos de aposentadoria. Mais uma vez, se desmoralizava a falácia, tão alardeada pelos meios privados de comunicação, de que o mercado controla por si só as desigualdades e o fluxo da economia.

Ainda pior são as consequências deste modelo para a maioria das famílias, que se viram obrigadas a recorrer a empréstimos bancários cada vez mais escorchantes para pagar o ensino médio e as faculdades de seus filhos. Por fim, por causa do esgotamento financeiro dos pais, os estudantes foram, eles próprios, compelidos a contrair obrigações financeiras, para pagar depois de formados. São tantas as obrigações, porque, realmente, para pagar uma educação média de 40 a 50 mil dólares por cada filho, o que daria uns 150 mil para uma família média de três crianças, que pais, mães e filhos acabam se endividando pela vida inteira por causa do ensino, que deveria ser gratuito.

Ao contrário do que apregoa e glamourisa a mídia hegemônica, para quem o Chile, por seguir fielmente as receitas do FMI, é o modelo dos sonhos, os chilenos padecem de sérios problemas de desigualdade, com uma peque classe privilegiada coberta de todos os direitos e o restante da população entregue a mais odiosa marginalidade. O jornal Página 12, publica hoje, matéria de autoria da jornalista Mercedes López San Miguel, relatando “o enorme fosso que separa ricos de pobres situa o país como um dos maisdesiguais do continente. Segundo a Universidade do Chile, a renda per capita dos 10 por cento mais pobres da população são 78 vezes menores que os dez por cento mais ricos”.

Este contexto motivou Michelle a construir uma proposta, agora com a cooperação de setores chave dos manifestantes, pois uma parte continua desconfiada dos governos da ex-Concertación e hoje Nova Maioria. Esta nova proposta, mais ampla e concertada que as anteriores, porque indo ao fundo dos problemas, assume o compromisso de resgatar a educação e a saúde gratuita e a dignidade das pensões dos aposentados.

Este programa já recebeu o respaldo da eleição em primeiro turno, que deu a maioria à nova coalizão no Parlamento. Mas para aplicar a gratuidade do ensino, por exemplo, que viria mediante uma reforma tributária, o governo Bachelet, que só começa em seis de março, precisa alterar a constituição, que só pode ser emendada por dois terços dos senadores e deputados.

Esta é uma trava que o neoliberalismo via pinochetismo instalou na vida do país e que inviabilizou todas as tentativas de reformas, ao longo de quatro governos de cohabitación. Conseguirá Michelle conquistar o apoio popular para pressionar o Congresso a dar o quorum qualificado para efetuar essas reformas, ou as elites chilenas repetirão a arrogância da plutocracia argentina, que provocou o colapso do país platino, em 2001?

Tal é o grande desafio de Michelle Bachelet, a simpática médica e mãe solteira de três filhos, que voltou a conquistar corações e mentes de seu país, a ponto de galgar 62,5 dos votos, contra 37,5 de sua rival, Evelyn Matthey, apoiada pelo atual governo de Piñera.

 

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